18 de maio de 2009

Introdução ao conceito de Sociedade de Controle

A sociedade contemporânea tem como característica fundamental o controle. Essa tem sido uma abordagem compartilhada por teóricos como Gilles Deleuze (o enunciador do conceito de “sociedade de controle”), Felix Guattari e Michael Hardt, além de seus inúmeros seguidores. Essa noção se conforma a partir da percepção de que a sociedade disciplinar, conceituada por Michel Foucault (notadamente em A História da Sexualidade e Vigiar e Punir), deixa de existir para dar lugar a um controle muito mais extensivo e eficaz.

A sociedade disciplinar tinha como referência basilar a arquitetura do panóptico, um modelo de vigilância prisional composto por uma estrutura circular que tem em seu centro uma torre na qual deve estar um vigia que, sem ser percebido visualmente pelos detentos, tem acesso visual a todas as celas – bem iluminadas graças a duas janelas: uma, interna, que permite a visão do vigia e outra, externa, que funciona como iluminação do interior da cela. O mecanismo disciplinar deve funcionar de modo a que a presença da torre possa dar a referência de uma vigilância perpétua, o que significa que a presença física do vigia na torre é dispensável. Basta a torre, marcada como o lugar da vigilância, pois essa onipresença virtual do vigia induz a que o detento passe a ser o seu próprio vigia.

Não é preciso lembrar que, para Foucault, esse modelo não servia apenas para ser utilizado em uma prisão, mas também na fábrica, na escola, no escritório, no hospital, no hospício ou em qualquer outra instituição típica da modernidade. O modelo de organização da modernidade é o disciplinar, o do panóptico. Foi essa estrutura que deixou de existir para dar lugar àquilo que Deleuze chamou de “sociedade de controle”, nessa nova sociedade que os teóricos (Lyotard em primeiro lugar) chamam de “pós-moderna” (Lyotard falava, ainda na década de 80, do “fim das grandes narrativas” modernas, uma era em que a única certeza é a incerteza).

A passagem para a sociedade de controle foi conceituada por Deleuze num texto curto que lança a noção, mas não a explicita suficientemente. Hardt (um dos autores dos excelentes livros “Império” e “Multidão”, junto a Antonio Negri, um ex-militante das Brigadas Vermelhas) entende que Deleuze forneceu “uma imagem sem dúvida bela e poética, mas não suficientemente articulada para nos permitir compreender essa nova forma de sociedade”.

A compreensão pode ser posta da seguinte forma: na modernidade, havia as instituições e seus muros; na pós-modernidade esses muros deixam de existir e a vigilância se espraia por toda a sociedade. Isso significa dizer que as instituições modernas não deixam de existir, mas sim que o controle extrapola seus muros e se distribui em rede por todas as relações sociais, incluindo a subjetividade – um atributo social, não individual, ao contrário do que comumente se entende.

Em outros termos, e aproveitando as noções de Zygmunt Bauman, outro autor de influência no pensamento contemporâneo, se pode dizer que havia moldes fixos, sólidos (Bauman fala de modernidade sólida), que se dissolvem para dar lugar a redes modulares, flexíveis, fluidas (modernidade líquida, diz Bauman). Estas são muito mais efetivas como mecanismos de controle e têm um teor de inclusão que é primordial para o mercado mundial capitalista – e os autores são praticamente unânimes ao afirmar que não é possível entender a contemporaneidade sem relacioná-la ao capitalismo.

Esse entendimento pode ser usado para formular uma proposta de interpretação da desvalorização que as instituições clássicas da modernidade têm experimentado. Tudo indica que as entidades clássicas do capitalismo liberal, não servem mais como mediadoras prioritárias do vínculo que o cidadão estabelece com sua subjetividade e com os sentidos sociais. Veja-se, porém, que a função que elas sempre desempenharam, a disciplinar, não esmoreceu, muito pelo contrário.

No entanto, na medida em que a disciplina se imiscui de forma tão pungente e eficaz pela rede social, essas instituições servem apenas como referências que podem e devem ser criticadas sem que as suas funções, libertas dos muros, sejam atingidas. Digo que “devem” ser criticadas por um motivo singular, fundamental para entender a eficácia do discurso do controle: este se apropria da contestação constituída contra a lógica que gerou essas instituições, toma-a para si e torna-a inócua – como, na prática, talvez sempre tenha sido (e há quem diga que a pós-modernidade apenas liberou a inutilidade dos discursos e contradiscursos modernos). Hardt exemplifica bem esse mecanismo quando fala do discurso pós-moderno do racismo.

Racismo sem raça
O racismo pós-moderno chama a atenção por descartar qualquer fundamento biológico. Fatos como esse, levam muitas pessoas a crer que o racismo teria perdido sua força, o que é um ledo engano. É imperativo afirmar, seguindo Hardt, que o racismo se acentuou, tendo apenas mudado de forma e de estratégia. O discurso racista abandonou o fator biológico, é certo, mas para se focar na cultura. Veremos, no desenrolar deste argumento, que essa mudança de postura vem de encontro às abordagens anti-racistas da modernidade, fundadas essencialmente na crítica ao estigma biológico. E é possível, dessa forma, perceber o quanto essas abordagens funcionam para fundamentar o controle pós-moderno. Como diz Hardt, “a teoria racista imperial surpreende, pela retaguarda, o anti-racismo moderno, e de fato coopta e alista seus argumentos”.

O racismo contemporâneo deixa claro que a raça não é uma unidade biológica isolada, afirma que a subjetividade e o comportamento não estão dependentes de genes, sangue ou cor de pele. O racismo pós-moderno entende, desse modo, que tudo isso está dependente, sim, de especificidades culturais. “Assim, as diferenças não seriam fixadas nem imutáveis, mas efeitos contingentes da história social”, pondera Hardt. E tudo na pós-modernidade – leia-se sociedade de controle – é cultural.

As diferenças culturais ocupam, hoje, o lugar que a biologia ocupou na modernidade. Isso pode parecer, para muitos, um avanço, uma libertação, pois é costume afirmar que a natureza é fixa e imutável, enquanto a cultura é maleável e fluida. No entanto, a noção pós-moderna de cultura é tão essencialista quanto o biológico. Não é à toa que hoje se fala tanto em preservação cultural, discurso que une anti-racistas e racistas pós-modernos, fazendo-os parecer farinha do mesmo saco. Não é possível pensar, nessa perspectiva, em miscigenação, em mistura de culturas. Estas devem ser preservadas, dizem.

Para entender melhor, se pode dizer que antes a diferença entre raças tinha um caráter hierárquico: havia a percepção clara de que algumas raças eram mais avançadas do que outras. Essencialmente, havia uma hierarquização como causa das diferenças: uns estavam atrasados, outros avançados, e aqueles um dia chegariam a ser como estes. No discurso racista contemporâneo a hierarquia é efeito de circunstâncias culturais. Hardt utiliza o exemplo da comparação entre alunos descendentes de africanos e outros de origem asiática. O melhor desempenho destes na escola não seria fruto de fatores biológicos, mas culturais: os americanos descendentes de asiáticos dariam mais valor aos estudos, encorajariam suas crianças nesse sentido. Segundo Hardt, “a hegemonia e a submissão das raças não é uma questão teórica, mas advêm de uma livre competição, de uma espécie de lei do mercado da meritocracia cultural”.

Fala-se não exatamente de exclusão, como o discurso oficial – e o discurso dos anti-racistas – diz. Fala-se de “inclusão diferencial”, ou, dizendo mais precisamente, a exclusão surge como efeito da inclusão. Há, assim, uma diferença de grau a considerar, não uma diferença de natureza. Diferenças são, sob essa ótica, não naturais, mas culturais. Todos são iguais, têm as mesmas oportunidades. Se não as aproveitam, não é por algum golpe traiçoeiro da natureza. Podem, assim, operar modificações em sua própria cultura, incluindo-se no capitalismo. Assistindo-se às novelas da TV Globo, por exemplo, pode-se aprender a fazer isso. Árabes, muçulmanos, judeus ortodoxos ou indianos podem aproveitar os avanços da cultura ocidental mantendo seus próprios ambientes culturais. Afinal, a história acabou, como disse Francis Fukuyama, não há mais motivos para conflitos. Basta aceitar a realidade “como ela é”.

Uma realidade especular
Para seguir rumo a uma conclusão desta breve dissertação introdutória ao tema da sociedade de controle, é preciso considerar um ponto fundamental, o da não existência da diferenciação entre fora e dentro no pensamento pós-moderno. Falar sobre isso é retomar o início deste texto, quando se fala da queda dos muros das instituições modernas (bem se pode incluir aí, com toda a sua força simbólica, a famosa queda do muro de Berlim). Porém, o tema merece uma localização de destaque, pois parece ser fulcral para entender melhor o que está acontecendo no presente.


A oposição clássica entre natureza e cultura, fundamentação do discurso civilizador europeu, parece ter perdido o sentido. A lógica pós-moderna é capitalista, não admite dissensos, deve buscar sempre a integração. Nada deve impedir o agregamento e tudo deve estar incluído. Nada pode se pôr no caminho da alucinada sanha integradora do capitalismo. Por isso, não há lugar para estruturas fixas ou regras. Nenhum outro sistema foi tão amante da transgressão quanto o capitalismo, entende Eagleton. Tudo é possível, contanto que circule em seu interior. Parafraseando Marx e Engels, com os termos de Bauman, tudo que é sólido se liquefaz.

Num relance de brilhante insight, Deleuze disse que tudo no capitalismo tem lógica, menos ele próprio, que opera por deslocamentos constantes com o claro intuito de desorganizar o todo para organizar a parte – a dinâmica das tribos pós-modernas (tratadas por Michel Maffesoli) dá mostras de como isso acontece. Simples aplicação da Teoria do Caos, criada para dar forma a uma estratégia de dominação a partir do controle molecular dos conflitos. Essa teoria tem grande aplicação nas estratégias de dominação empresarial, entendendo que há ordem na desordem ou, como Mike Featherstone interpreta, há uma irresistível desordem bem ordenada. É por isso que toda a “revolta jovem” dos anos 1960 não passou de uma bela estratégia de marketing. Não é possível esquecer que o punk, o movimento mais radical nascido dessa “revolta”, saiu da cabeça de um publicitário.

Capturando a oposição para a situação, fazendo dos claros e escuros meros tons de cinza, o capitalismo traz para si toda a vida, mortificando-a. O sujeito não tem contra o que se rebelar, a não ser contra si mesmo. Mas, para fazer isso, precisa se recriar e remar contra a maré da sociedade do espetáculo (Guy Debord) sem, no entanto, sucumbir no “deserto do real”. Precisa, em primeiro lugar, perceber que se encontra em um ambiente especular, no qual tudo o que é dito, inclusive que não há como distinguir dentro e fora, pois tudo está incluído, tem que ser posto no espelho para ser entendido. Não adianta ir contra leis e regras, pois, como bem disse Baudrillard, é preciso amá-las para transgredi-las. Assim, mesmo o delinquente está dentro.

Outra boa demonstração de como funciona esse sistema em que praticamente tudo está posto no espelho é o discurso da insegurança, ou melhor da chamada “segurança pública”. Um sistema que se funda na instabilidade, na transgressão, na ausência quase completa de referências polares, como bem/mal ou certo/errado, que incentiva o consumo obsessivo, produz inevitavelmente insegurança, como seu produto mais precioso. No entanto, esse sentimento de instabilidade e angústia fica remetido, num deslocamento grosseiro, para a ameaça do crime, geralmente o crime cometido por pobres, ou seja, os que roubam pouco, de forma rápida e agressiva. O verdadeiro crime, o verdadeiro gerador da insegurança, aquele no qual se rouba muito, de modo lento e quase indolor, não é sequer mencionado nos discursos de segurança pública. Um tanto estranho isso.

Sem a noção do contraditório, fala-se de alteridade. Mas, que “aceitação do diferente” pode haver em uma subjetividade marcada pelo dogma cristão do amor ao próximo: ama-o como a ti mesmo. Onde está o outro senão no “a mim mesmo”? Trata-se da máxima do monoteísta: se há um só Deus, há uma só verdade num único ente. Não devemos nos iludir com a aparente fragmentação da identidade pós-moderna. Por detrás dela, denuncia Beatriz Sarlo, não está o vazio, está o mercado. O mercado capitalista mundial, diz Jameson e também Hardt (Guattari fala em Capitalismo Mundial Integrado e propõe a sigla CMI) . Tudo indica que, sem tocar nesse assunto, não há como entender o mundo do presente, que tem proposto ser a adesão aos cultos pagãos dessa divindade mercadológica o rito de passagem para entrar no paraíso terrestre do consumo. Mas, se entrar significa ir para dentro, como aceitar que não há mais divisão entre o dentro e o fora?

É necessário, acima de tudo, entender que essa divisão continua valendo, embora tudo indique o contrário. Se não fosse assim, por que os “consumidores falhos” (termos de Bauman) seriam barrados nos shopping centers? Fala-se do real forcluído (que sofreu split off, diria Melanie Klein) a que Slavoj Zizek se refere quando toca o tema da ideologia. Trata-se da pedra fundamental do edifício ideológico da chamada pós-modernidade, aquela sobre a qual vivemos e na qual estamos constantemente a tropeçar quando tentamos pensar a realidade. No entanto, é exatamente aquela que todos dizem não existir (1).

Desse jeito, quem sabe o melhor a fazer é tomar a mão de Alice, como propõe Boaventura de Souza Santos num título de um de seus livros, e encarar esse terrível e maravilhoso mundo que a contemporaneidade nos apresenta. Ainda mais quando sabemos que justamente a sociedade de controle é a que mais falou de liberdade em toda a história humana.

(1) Talvez a definição essencial do dentro e do fora nos seja dada no limite existente entre aqueles que operam essa ilusão especular e aqueles que a consomem inconscientemente. É uma hipótese que merece investigação. Mas, onde operar esse corte?


Luiz Geremias

3 comentários:

  1. Se possível, poste mais sobre "As sociedades de controle" Que Deleuze explica, seria bom e interessantíssimo ! Obrigada, Miss.Reis

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  2. PERGUNTA PRA VOCÊ. ESTA PARTE DO SEU TEXTO, VOCÊ TOMOU POR BASE O TEXTO DE DELEUZE,"AS SOCIEDADES DE CONTROLE"? ASS. MISS REIS, OBRIGADA.
    "A compreensão pode ser posta da seguinte forma: na modernidade, havia as instituições e seus muros; na pós-modernidade esses muros deixam de existir e a vigilância se espraia por toda a sociedade. Isso significa dizer que as instituições modernas não deixam de existir, mas sim que o controle extrapola seus muros e se distribui em rede por todas as relações sociais, incluindo a subjetividade – um atributo social, não individual, ao contrário do que comumente se entende. "

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  3. A compreensão pode ser posta da seguinte forma: na modernidade, havia as instituições e seus muros; na pós-modernidade esses muros deixam de existir e a vigilância se espraia por toda a sociedade. Isso significa dizer que as instituições modernas não deixam de existir, mas sim que o controle extrapola seus muros e se distribui em rede por todas as relações sociais, incluindo a subjetividade – um atributo social, não individual, ao contrário do que comumente se entende.
    É TIRADO DO TEXTO DE DELEUZE,
    "SOCIEDADEES DE CONTROLE" ???????

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