18 de junho de 2009

Sobre pastores e jardineiros

M. André G. Haudricourt propôs uma noção interessante para entender a subjetividade de certos povos antigos. Ele contrapõe aqueles que têm como atividade principal o pastoreio e aqueles que chama de “jardineiros”, que são os povos que, como os chineses, compreendem que toda e qualquer ação só é adequada e eficaz se diz respeito das forças naturais. As relações sociais destes “jardineiros” seriam marcadas por uma ordenação que considera um equilíbrio pautado na imanência, ou seja, eram tidas como organizadas de acordo com a natureza dos seres e do ambiente que os abriga. Já o espírito societário dos “pastores” se relacionaria pelo modelo direto e constrangedor de um saber que determina o poder de uns sobre os demais. Certamente se deve dizer que, nesse molde, há os que pastoreiam e há, inevitavelmente, as ovelhas pastoreadas, ou, em termos mais claros e diretos, há os que sabem e mandam e há os que ignoram e obedecem.

Toda a história do ocidente parece marcada por esse parâmetro subjetivo de pastoreio. É preciso atividade, acima de tudo. Não é possível imaginar ficar esperando boas condições para realizar algo. O ocidental deve criar as condições, gerar sua própria história, intervir diretamente sobre a realidade. Enquanto o jardineiro precisa saber lidar com as condições ambientais, climáticas, o pastor não quer saber disso: quer apenas que elas se adaptem ao seu interesse. O jardineiro espera a hora certa para plantar e colher, o pastor quer semear e conseguir frutos na hora em que desejar. Por isso, aquele aprende com a natureza, enquanto este tenta ensiná-la como melhor satisfazê-lo.

O pastor é transcendente, isto é, considera-se de inteligência superior, dotado de atributos que ultrapassam a realidade sensível e que o fazem independente da natureza e determinam que ele aja autoritariamente sobre ela. O jardineiro cultua a imanência, ou seja, está voltado para aquilo que é inerente à natureza, por isso precisa respeitar seus ciclos e acatar os ditames naturais que o seu corpo traz. O deus do pastor é, assim, impositivo e autoritário, único e dono de uma verdade única. O jardineiro crê numa deidade que se distribui pela realidade e que representa o conjunto de forças presentes na natureza. O pastor tem um deus que determina a realidade; já o jardineiro entende que a realidade conforma a sua divindade.

Há inúmeras formas de exemplificar a influência da lógica do pastor nas sociedades ocidentais. É possível utilizar a proposta educativa, que parte do pressuposto de que o rebanho de crianças nada sabe e deve ser conduzido pelo professor. Mas também é viável utilizar o formato comunicacional massificado do ocidente como modelar dessa fórmula subjetiva. Um emissor envia mensagens para inúmeros outros, assim como o pastor dá ordens a seu rebanho. Ele assim age por entender que o rebanho depende dele para sobreviver, mas também por se achar superior.

A orientação que conduz essa mentalidade se reporta ao fato de que o pastor é dotado de inteligência, enquanto o rebanho não é. É possível dizer que o guia se caracteriza pela superioridade humana frente aos animais, da mesma forma como o ocidente aprendeu que o homem é o interventor da natureza simplesmente porque a reinventaria e suplantaria com sua cultura própria. E, usando as palavras de Jean-Pierre Vernant, “a produção humana obedece a uma finalidade inteligente, enquanto os processos naturais realizam-se ao acaso e sem previsão”.

O motivo prático que alimenta a produção subjetiva do pastoreio, geralmente não enunciado claramente, é que o rebanho alimenta o pastor com a sua própria carne e não convêm a ovinos, caprinos ou bovinos questionar isso, muito menos a bandos humanos. Devem, certamente, agradecer ao pastor por este devorá-los. Qualquer semelhança com a contemporaneidade urbana e sua dinâmica não é mera coincidência.
Luiz Geremias

Nuvens 7

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Nuvens 6

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17 de junho de 2009

Nuvens 5

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Nuvens 4

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16 de junho de 2009

Nuvens 3

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Nuvens 2

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Nuvens 1

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Cinco pontos de vista

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4 de junho de 2009

A lua (2)

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Reflexos urbanos

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Sol vespertino - Brasília

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Cruzada literária

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Dia dos namorados é todo dia

Dia das mães, dos pais, da criança, do índio e por aí vai. Dia dos namorados é o próximo, 12 de junho.

Para que esses tais dias? Para vender mercadorias, é a resposta mais direta. Mas, só para isso? Objetivamente, sim, dirão os práticos, os idiotas da objetividade de Nelson Rodrigues. A estes cabe lembrar o que é o amor, seja por pai, mãe, índio, criança ou namorados e namoradas.

O amor é o patrono da singularidade. É através dele que se constitui a autonomia de alguém, apenas quem ama é alguém. Amar, porém, não é trepar, é preciso ficar claro. Também não é grudar em alguém só para escapar de meia dúzia de angústias e sugar a vida do suposto amado ou amada.

Por que o amante é singular, é gente? Por que ele sabe que não pode esperar nada de quem ama, que tudo o que vem dessa pessoa é um presente. Que não há nada que se possa fazer para obrigar alguém a dar algo que não pode dar - porque não tem - e que amar é aceitar não apenas a pessoa amada, mas a nós próprios, que amamos. Amar, de certa forma, é aceitar a solidão, é se descobrir só, como, afinal, é nosso destino, de todos os que chamamos de humanos. Não dá pra usar o amor para fugir da solidão, ela é uma realidade, ou melhor, é real. Não há amor sem solidão, não há como amar tentando não ser sozinho.

Cuidado, amar é perigoso. A lógica de convivência que une os laços em nossa sociedade não admite o amor. Geralmente quem ama é punido por isso.

A paixão, por sua vez, é o estado de negação da solidão. Um delicioso e tenebroso delírio no qual escapamos de nossa condição de autonomia, de solidão, aquilo que nos faz ser o que somos. Quer destruir alguém, se apaixone por esse alguém. O problema é que você se destruirá também...

Eu amo e tenho certeza de não preciso de dia nenhum para representar meu amor. Amo todo dia, amo para sempre. E nesses momentos, me descubro só e descubro que esse é o tempero que faz com que meu amor seja maravilhoso. Obrigado Karina. Por você, por seu amor, enfrento os perigos de amar neste mundinho cheio de ressentimentos com relação a quem ama.
(Entendo bem do assunto: meu filho Alexandre nasceu em 12 de junho; minha filha Alice nasceu em 14 de fevereiro - valentine's day)

Luiz Geremias

O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma "guerra a Beira-Mar"

Para entender o porquê da mídia gostar tanto de noticiar crimes, só lendo o trabalho "O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma 'guerra a Beira-Mar'"? Dissertação de mestrado indicada para publicação e definida pela banca como o melhor texto já escrito sobre o tema.
Abaixo, o link:
Lendo esse texto você vai saber:
- diferenciar guerra à beira-mar de guerra a Beira-Mar;
- por que a classe média é composta de cadáveres animados;
- quem são os bandidos mais perigosos (não são os dos morros cariocas, posso adiantar);
- uma breve história do Comando Vermelho;
- por que Fernandinho Beira-Mar ganhou tanto espaço na mídia;
- que o traficante acima citado é a imagem da classe média: têm em comum o fato de terem "perdido".

Notas sobre o dramalhão jornalístico

A realidade é complexa. Para escrever sobre ela, é preciso ter a humildade de aceitar isso. No entanto, todos os dias os ditos "grandes jornais" e seus jornalistas deixam claro que não entendem a realidade dessa forma. A falta de iniciativa para relatar o fato como um acontecimento rico em sentidos e em vetores – como geralmente todo fato é – está tornando a leitura de jornais uma tarefa desagradável. Não tanto com relação à forma, já que, procurando bem, se encontram alguns belos textos. A questão está mais nos conteúdos, em geral formados por lugares-comuns e estereotipias conceituais. Podemos mesmo apostar que é possível que o exercício da forma tenha fagocitado todo e qualquer conteúdo possível, tornando-se puro estilo jornalístico, completamente desvinculado da base que o faz existir, a comunicação. Maior do que ela, maior do que o fato, mais real do que o real que retrata. Como diria o mestre Jean Baudrillard, hiper-real.

Ler jornais, hoje, é entrar em contato com um exercício delirante, no qual somos convidados a participar de uma espécie de mundo de "faz-de-conta". O maior pecado da imprensa, porém, não é inventar esse mundo e tentar fazer com que os leitores acreditem, mas acreditar, ela mesma, na fantasia que criou ("A mídia norte-americana ainda faz xixi no pé e diz que está chovendo", interpreta Greg Palast). Se ela apenas o tivesse inventado, estaríamos safos de maiores problemas. Se simplesmente pudéssemos acusá-la de desonestidade, poderíamos estar mais tranqüilos. No entanto, o que é grave é perceber que a imprensa – aqueles que nela trabalham – acredita no mundo que criou porque não consegue enxergar outra perspectiva.

Cabe refletir sobre se não estamos lidando, como sugeriu durante uma aula o mestre Muniz Sodré, com uma forma parasitária (aquilo que podemos chamar de "cultura da mídia", que prioriza as midiatizações e desarticula, assim, as mediações) que, como tal, precisa se apegar a algo vivo para sobreviver e tirar dele sua força – no caso, a viva dinâmica da realidade em todos os seus níveis. Assim, percebemos, desolados, que a prática da imprensa na contemporaneidade se assemelha à do helminto. E, como já sugerido, o problema maior é que uma coisa é uma lombriga aceitar sua condição. Outra, é se olhar no espelho e se enxergar com a imponência e o poder de uma naja.

Modelos não são conceitos
Temos em mãos uma matéria que pretende abordar o tema da evasão escolar. Foi publicada no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (PR), no dia 11 de março de 2007, na editoria "Paraná", páginas 4 e 5. Não vamos citar o autor por um simples motivo: não importa personalizar a autoria, pois se trata de um clássico texto jornalístico que poderia ter sido escrito por qualquer jornalista daquilo que chamamos "grande imprensa".

É preciso ressaltar que o texto não é ruim, pelo contrário. O jornalista é habilidoso com as palavras e sabe extrair delas articulações impressionantes. Conduz bem a narrativa e insere gags espirituosos aqui e ali. O problema, como posto por essa matéria, é que possivelmente se daria melhor como escritor de romances populares. Não apenas ele, mas a maioria dos jornalistas das grandes organizações de informação. O autor da matéria parece seguir um modelo e, como dizia o mestre Baudrillard, modelos não são conceitos, não têm qualquer relação com o acesso a um sistema de representação. O modelo é pré-moldado. Na verdade, a matéria não foi escrita por ninguém, foi criada dentro de um modelo, e, por conseguinte, todos os que seguem esse modelo a poderiam ter escrito. Logo, todos merecem a crítica, porém ninguém vai dar qualquer atenção.

Elenco de panacéias
O título é bombástico e comovente: "Viagem à tragédia da Educação". Bela matéria no espaço (duas páginas), na diagramação, na variedade de informações. No entanto, o título já nos prenuncia realmente uma tragédia maior do que a evasão escolar: a insistência do jornalista em transformar esse tema, que exige uma leitura complexa – que já vem sendo feita em diversos níveis, logo há muitas fontes a pesquisar –, em um texto folhetinesco, no qual o trágico e o dramático pululam e praticamente não dão lugar ao relato jornalístico. Quer dizer, descobrimos que o enredo da tragédia disposta na matéria é uma trágica tentativa de reduzir o mundo a algo próximo a um romance policial de bolso (o pulp estadunidense) ou a uma fotonovela.

Como tem sido costume na grande imprensa, a tendência para o dramalhão toma praticamente todo o texto. De fato, essa é, na verdade (e isso não é culpa do jornalista), a melhor fórmula para captar a atenção do público leitor – porém, é certo, não é a mais honesta, sob o ponto de vista intelectual. Bolívar Costa, que estudou com afinco a classe média uns 40 anos atrás, já dizia que o indivíduo mediano, o "homem medíocre" (como o chamou José Ingenieros), tem a tendência a enxergar o mundo como um enredo melodramático. Diz Costa: "Insulados no individualismo extremado e quase exclusivamente empenhados na realização do bem-estar pessoal e familiar, tendem, naturalmente, para o sentimentalismo exagerado, o masoquismo, o escapismo." É que, segundo o autor, "Os sacrifícios mediante os quais os setores médios contam alcançar a maximização do seu poder sócio-econômico e do prestígio, ao mesmo tempo em que contribuem para consolidar a ética ascencional, produzem toda uma gama de traços de natureza depressiva.

Ao aparente otimismo frente às possibilidades futuras, contrapõe-se um pessimismo oculto diante das realizações presentes. A fim de tornar suportável semelhante carga depressiva, lançam mão de um diversificado elenco de panacéias, tais como a pseudociência (‘cure suas neuroses’, ‘como evitar preocupações’); a pseudoarte (sub-ficção científica, romances policiais de baixo nível, literatura ultra-romântica, historietas, cinema sob medida); e o entretenimento vulgar, como o clubismo, a boate, o inferninho, o estrelismo artístico, esportivo e sentimental, o mundanismo em todas as suas formas, o bate-papo vazio. Esses recursos são mobilizados para ajudar a ‘matar o tempo’ ou a proporcionar ‘sensações fortes’, saídas que não deixam de revelar certo grau de indigência emocional."

"Vida sem vida"
Dessa forma, reportagens sobre o bárbaro assassinato de uma criança – como o recente caso de um menino cruelmente arrastado pelas ruas em um carro roubado no Rio de Janeiro – suscitam justa revolta no público pequeno-burguês, enquanto qualquer estudo que demonstre que várias crianças morrem anualmente vítimas da violência nas comunidades pobres, de desnutrição ou de outras doenças causadas por tenebrosas condições de vida, não desperta lá muita comoção. Para o indivíduo-padrão da classe média, o herói se equivale ao mártir e os sofrimentos de vários jamais suplantam o sofrimento do indivíduo. Aparentemente, o jornalista sabe disso e produziu um texto pleno de vítimas individualizadas, sem qualquer contextualização a não ser a do sacrifício.

É assim que a "grande imprensa" procede. A respeito desta, H.L. Mencken – que também tinha uma impressão bastante crítica do cidadão de classe média – tinha a pior conceituação. Para ele, se há alguma diferença entre a imprensa "mais respeitável" e a marrom, é que esta mente sobre coisas sem importância, enquanto a outra... Para ele, "O problema dos jornais do primeiro escalão é que quase todos estão hoje nas mãos de homens que vêem o jornalismo como uma espécie de linha auxiliar para empreitadas maiores e mais lucrativas – como um meio conveniente de enrolar e anestesiar um público que, de outra forma, se voltaria contra eles."

A estratégia parece ser, então, a encenação da tragédia pequeno-burguesa em forma de notícias. No caso em estudo, a evasão escolar deixa de ser um tema rico e importante para pensar não apenas a origem e o destino de milhares de jovens, as articulações objetivas e subjetivas dessa faixa populacional em relação à Educação e outros tantos temas possíveis. Torna-se, em vez disso, enredo de uma tragédia que, de tanta dramaticidade, acaba se tornando burlesco.

Como mostram Bolívar Costa, Mencken e também Baudrillard – quando define o fun-system –, o cidadão-médio parece gostar disso. Enquanto lhe inventam tragédias e horrores, ele esquece sua própria trágica passividade, sua "vida sem vida". É um dos poucos seres vivos, talvez o único, que se movimenta para ficar sempre no mesmo lugar.

Credibilidade numérica
Uma das obsessões de todo jornal parece ser o uso de números. Eles parecem explicar tudo e se há quem diga que uma imagem vale por mil palavras, mais apropriadamente se pode dizer que, na imprensa, um bom infográfico estatístico vale por todo um texto. Se não há números, não há credibilidade.

O exemplo mais esdrúxulo que já vi foi o de um suplemento pago por uma entidade empresarial, há alguns anos, que anunciava um número estrambótico como resultado dos prejuízos com a pirataria de produtos. Como se fosse possível quantificar precisamente isso. Números, assim como imagens, não falam, não dizem nada por si. Precisam que alguém os signifique. No entanto, dão a ilusão mágica da precisão, funcionam como veículos do que "É", da Verdade, instituem-se como argumentos irrefutáveis. A entidade supostamente antipirataria usou números assustadores para falar dos prejuízos que a pirataria causa à economia. Tentou, assim, tornar pungente a queixa empresarial sem dizer, é claro, que há quem considere o moderno empresário como o sucessor autêntico dos antigos corsários.

No caso do texto sobre a evasão, os números estão presentes, é claro. E, ao que tudo indica, não são tão desaforáveis assim, segundo o próprio texto. Porém, o tom dramático do texto não dá margem a boas notícias: "Taxas de abandono são pequenas à primeira vista, mas a longo prazo têm resultado traiçoeiro", afirma o jornalista. E mais: "Ano passado, o Paraná foi a única federação que não perdeu alunos. E o melhor – teve um acréscimo de 12 mil vagas. Mesmo assim... (...)"

Não adianta. O objetivo é dramatizar e a redução drástica da evasão apontada pelo governo do estado e pela prefeitura de Curitiba são tratados como detalhes traiçoeiros. Na matéria, as estatísticas são sempre desfavoráveis ao poder público, que é acusado de "falta de rigor" no trato da questão. É que o jornalista aposta meio cegamente na fórmula que dita que o Estado deve controlar tudo, saber de tudo, estar em todos os lugares. Em suma, o Estado deve ser uma espécie de Deus.

Gilles Deleuze formulou a hipótese de que nos encontramos em uma "Sociedade de Controle" na qual todos somos números e, aparentemente, fazemos tudo o que "o mestre manda", julgando estar fazendo exatamente o que queremos. Aparentemente, para os jornalistas, esse mundo não apenas é desejável, como devemos lutar com unhas e dentes para que se acirre e se torne mais vigilante e persecutório. Basta, para essa mentalidade, que o Estado apresente diversos números, quanto mais complexos melhor, para que mereça elogios por estar "cuidando" (leia-se, controlando) do cidadão.

Tragédia por detrás da tragédia
Esse enaltecimento do controle lembra o que Slavoj Zizek diz da sociedade ocidental: um lugar da vida sem riscos, da certeza total da segurança, do controle total – e ilusório – do real, da vida sem vida. Um lugar do controle mágico, no qual o número estatístico fascina por si só, independendo da realidade. A sociedade em que uma fala sem estatísticas tem menos credibilidade do que outra, recheada de quantificações, ainda que estas sejam tão sólidas que desmancham no ar. Mas, como um dia disse Baudrillard, "a credibilidade não passa de um efeito especial".

Aliás, o Estado, no texto folhetinesco da matéria, parece a sociedade ou a família injusta e cruel contra a qual geralmente os heróis folhetinescos lutam, como a empregada que se apaixona pelo filho do patrão e tem que lutar contra o preconceito da família para realizar seu sonho amoroso, ou como o menino pobre que deseja uma vida melhor mas tem que lidar com o descaso da sociedade que o condena por ser pobre etc.

A diferença é que as vítimas da matéria lutam para estudar. Não há, na matéria, qualquer análise histórica ou conjuntural para entender o problema, qualquer interpretação que leve em conta a complexidade da situação. Logo, é inútil ler a matéria na busca de entender melhor a questão. No máximo, pode-se lê-la para entender como funciona a interação entre o jornalismo medíocre e o público que o consome.

Recorrendo novamente a Baudrillard, podemos afirmar que "nem a massa tem opinião, nem a informação os informa; uma e outra continuam a alimentar-se monstruosamente" nessa busca perversa de apreensão da verdade, na qual esta é "um lugar vazio que é preciso saber jamais ocupar". Ocupá-lo, para Baudrillard, é um ato "obsceno e imundo e, cedo ou tarde, acaba por se desmoronar no sangue ou no ridículo". Em outras palavras, a matéria que analisamos mostra que a farsa da busca da verdade oculta, ela sim, uma digna tragédia.

O objetivo é assustar, aterrorizar, mostrar como o cidadão está indefeso e, conseqüentemente, dar a impressão de que a brava imprensa está vigilante para socorrê-lo. É a fórmula denunciada por Mencken para "conquistar o interesse do homem inferior": "Primeiro amedronte-o – e depois tranqüilize-o. Faça-o assustar-se com um bicho-tutu [mais conhecido como tutu-marambá] e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o monstro. Ou seja, primeiro engane-o – e depois engane-o de novo."

Ineficiência do Deus-Estado
Ou, como lembra Barry Glassner, "perigo algum é pequeno o suficiente para que não possa ser transformado em um pesadelo nacional". O resultado é o que Rollo May interpreta quando observa os encontros sociais da classe média, como as colônias de veraneio ou as "baladas" nos bares: "É como se aquela agitação fosse uma cerimônia tribal primitiva, uma dança de feiticeiros destinada a aplacar uma divindade: é o espectro da solidão que vagueia lá fora, como a neblina vinda do mar." Num mundo terrível como esse, ninguém quer ficar sozinho.

Note-se que o tema da evasão escolar tem sido objeto de vários estudos e interpretações. O jornalista ignorou toda e qualquer pesquisa para aprofundar o tema. A Folha de S. Paulo, por exemplo, publicou pelo menos duas matérias – uma no final de 2006 e outra logo no início de 2007 – nas quais levanta a questão e dá margem a uma reflexão sobre o tema, chamando a atenção para o desinteresse do aluno pela escola como o principal fator que o leva à evasão. Desse modo, dá para começar a fazer uma profícua reflexão sobre o modelo de ensino e a refletir sobre o porquê da escola ser desinteressante. Mas, tudo isso é ignorado pelo jornalista, que prefere apontar a ineficiência do Deus-Estado e listar a relação martirológica dos estudantes que deixaram as aulas.

Lógica liberal
Há, na internet, alguns sites que contêm textos que discutem o tema, problematizando-o e, assim, fugindo às soluções fáceis do dramalhão jornalístico. O jornalista nem quis saber disso. Colheu parcas informações e dados estatísticos e os dispôs como quis. Falar, por exemplo, que no Paraná 80 mil alunos deixam, anualmente, a escola é um "chute" irresponsável, principalmente pela ilusão de cumulatividade "digna de pânico", segundo o texto.

Como o jornalista deixa entrever em sua própria matéria, os "evadidos" são difíceis de captar e de quantificar e deixam a escola por inúmeros motivos, geralmente interligados. No máximo, pode-se saber que um certo número de alunos está ausente das salas de aula num ano, não se podendo afirmar que são os mesmos ou outros no ano seguinte. Outra barriga é falar de uma "aluna vítima", que está há três anos fora da escola, e relatar que a Secretaria de Educação do Paraná tem registros que mostram que ela estudou em 2005 e esteve fora apenas em 2006. Basta uma conta simples para ver que há algo errado aí.

Seria preciso um controle muito maior do que já há em nossa "Sociedade de Controle" para conseguir a precisão estatística desejada pelo jornalista e, provavelmente, por seus leitores. E, ademais, não se sabe se ajudaria tanto assim. A situação abrange muitos elementos e vetores e envolve uma estrutura social bem maior do que a da escola. Também de nada adianta "descobrir" que a "violência", as drogas ou a gravidez precoce são determinantes no abandono da escola. Isso é lugar-comum, frase feita, penúria intelectual. Importa mais entender o porquê desses fatores serem hoje tão presentes na sociedade e como desarticulam os projetos de adolescentes e professores. Tudo isso é bastante complexo, temos que admitir. No entanto, a complexidade não rende bons folhetins e o autor da matéria folhetinesca optou pela simplificação emotiva e o uso quixotesco de números.

Há interpretações possíveis e sensatas, como a professadas pelos opositores da ordem mundializante ditada pela quadrilha chamada ordinária e pomposamente de "mercado". Para eles, o aluno deixa a escola porque não vê motivos para fazer o esforço de continuar nela. Não há como negar que é preciso considerável esforço para estudar; todo mundo que estuda e que já passou pela escola sabe disso. Não há incentivo porque não há uma projeção de um futuro que seduza o estudante.

Uma sociedade refém daquilo que chamamos de "mercado" não consegue inculcar no jovem, principalmente no jovem pobre, a importância de estudar. Ela dita que se dá bem neste mundo aquele que tem dinheiro e aquele que é mais esperto. Na escola não se ganha dinheiro, não se aprende a ganhar dinheiro, nem se fica mais esperto. Tudo isso é plausível. É, no mínimo, um vértice diferente para a abordagem da questão. Mas o jornalista optou pelo vértice único, pela versão única que Francis Fukuyama chamou de "fim da história", ou seja, a supremacia da estreita lógica liberal para interpretar a realidade.

Baudrillard pode nos ajudar a entender o que ocorre: "O que é grave não são as distorções da verdade no interior da máquina, mas a distorção de todo o real pela fiabilidade objetiva dessa máquina". Esta, sim, é uma digna e terrível tragédia, cuja complexidade desafia mais do que a da evasão escolar.


Por Luiz Geremias em 20/3/2007

Padrões de manipulação na grande imprensa

Tudo se passa como se a imprensa se referisse à realidade apenas para apresentar outra realidade, irreal, que é a contrafação da realidade real. Podemos usar o modelo do “Espelho Deformado”: a imagem do espelho tem algo a ver com o objeto, mas não só não é o objeto como também não é a sua imagem; é a imagem de outro objeto que não corresponde ao objeto real.

Por que o público acredita nessa imagem? O público é fragmentado no leitor ou no telespectador individual, ele só percebe a contradição quando se trata da infinitesimal parcela da realidade da qual ele é protagonista, testemunha ou agente direto, e que, portanto, conhece. A outra parte, todo o resto, ele apreende por conhecimento, por ler ou ouvir dizer. Essa parte é aquela que a imprensa forma, “informando”. Temos, assim, que a maior parte dos indivíduos move-se num mundo que não existe, e que foi artificialmente criado para ele justamente a fim de que ele se mova nesse mundo irreal.

Manipulação de informação é, então, manipulação da percepção de realidade.

Os padrões
A manipulação ocorre de várias e múltiplas formas. Nem todas as matérias jornalísticas podem ser consideradas como manipuladoras, mas a gravidade do fenômeno decorre do fato de que ele marca a essência do procedimento geral do conjunto da produção cotidiana da imprensa, embora muitos exemplos ou matérias isoladas possam ser apresentados para contestar a característica geral.
Podemos distinguir, pelo menos, 4 padrões de manipulação gerais para toda a imprensa e mais um específico para o telejornalismo:

1. Padrão de ocultação:
Alguns fatos são considerados “jornalísticos”, outros não. Há uma seleção do que apresentar ao público, o que “é notícia”. Para o jornalista, há o “fato jornalístico” e o “fato não-jornalístico”, logo ele deve apresentar o primeiro e ocultar o segundo. Essa concepção acaba funcionando, na prática, como uma racionalização a posteriori do padrão de ocultação na manipulação do real.
O fato não é jornalístico ou não-jornalístico em si. As características jornalísticas, quaisquer que elas sejam, não residem no objeto da observação, e sim no sujeito observador e na relação que este estabelece com aquele. Todos os fatos, toda a realidade pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe das suas características reais intrínsecas, mas depende, sim, das características do órgão de imprensa, da sua visão de mundo, da sua linha editorial, do seu “projeto”.
O fato real ausente deixa de ser real para se transformar em imaginário. E o fato presente na produção jornalística, real ou ficcional, passa a tomar o lugar do fato real e a compor, assim, uma realidade diferente da real, artificial, criada pela imprensa.
Este é um padrão que opera principalmente na pauta.

2. Padrão de fragmentação:
Feita a seleção do que é jornalístico e não-jornalístico, o material selecionado é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte das vezes desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus antecedentes e de seus conseqüentes no processo em que ocorrem. Geralmente são reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos reais, mas a outros ficcionais e artificialmente inventados.
Inclui duas operações básicas:
2.1. A seleção de aspectos, ou particularidades, do fato: como na ocultação, depois de fragmentado, o fato tem suas partes de interesse para o veículo selecionadas para apresentação ao público.
2.2. A descontextualização: isolados como particularidades de um fato, o dado, a informação, a declaração perdem todo o seu significado original e real para permanecer no limbo, sem significado aparente, ou receber outro significado, diferente e mesmo antagônico ao significado real original.
O padrão de fragmentação ocorre também na pauta, mas principalmente na apuração, na produção da matéria e na edição.

3. Padrão de inversão:
Depois de selecionado o “fato jornalístico”, depois de fragmentado e resignificado, há a inversão, isto é, o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes, a substituição de uma por outras. Há várias formas de inversão. As principais são:
3.1. Inversão da relevância dos aspectos: o secundário é apresentado como o principal e vice-versa; o que é acessório e supérfluo são apresentados no lugar do que é importante e decisivo. O pitoresco, o esdrúxulo, o detalhe, se tornam essenciais.
3.2. Inversão da forma pelo conteúdo: o texto passa a ser mais importante que o fato que ele reproduz.
3.3. Inversão da versão pelo fato: a versão importa mais que o fato. O veículo renuncia a observar e expor os fatos e prefere apresentar as declarações, suas ou alheias, sobre esses fatos. Se o fato não corresponde à versão, deve haver algo errado com o fato. Tem duas formas:
3.3.1. O frasismo: a frase, ou pedaços da frase, substitui o fato. Uma frase, um trecho de frase, às vezes uma expressão ou uma palavras, são apresentados como a realidade original.
3.3.2. O oficialismo: a versão de alguma autoridade – que guarda identidades com os interesses do veículo – prevalece sobre o fato. Este some para dar lugar à “versão oficial”.
3.4. Inversão da opinião pela informação: a informação, o relato do fato, é trocado pela opinião do veículo. O juízo de valor é inescrupulosamente utilizado como se fosse um juízo de realidade, quando não como se fosse a própria mera exposição narrativa/descritiva da realidade. Esta inversão é operada pela negação, total ou quase total, da distinção entre juízo de valor e juízo de realidade. Não se reflete, assim, nem a realidade nem essa específica parte da realidade que é a opinião pública ou do seu público. Este recebe a opinião, autoritariamente imposta, sem que lhe sejam igualmente dados os meios de distinguir ou verificar a distinção entre informação e opinião. Esta passa a ser não apenas o eixo principal da matéria, mas sua principal ou única justificativa de existência. A informação, quando existe, serve apenas de mera ilustração exemplificadora da opinião adrede formada e definida. Essa inversão pode assumir caráter tão abusivo e absoluto que passa a substituir a realidade até aos olhos do próprio órgão de informação.
O padrão de inversão ocorre principalmente na edição.

4. Padrão de indução:
O leitor é induzido a ver o mundo não como ele é, mas sim como querem que ele seja. O público é excluído da possibilidade de ver e compreender a realidade e induzido a consumir outra realidade, artificialmente inventada. O padrão de indução é o resultado e, ao mesmo tempo, o impulso final da articulação combinada dos outros padrões de manipulação.
Ocorre na pauta, na apuração, na produção e na edição, mas ultrapassa todos esses processos na medida em que os abarca.

5. Padrão global ou o padrão específico do jornalismo de televisão e rádio:
O jornalismo de TV e Rádio passa por todos os 4 padrões de manipulação, mas tem um que é específico. A expressão “global” é utilizada para significar total, completo ou “redondo”, isto é, do problema à sua solução. Se divide em 3 momentos básicos:
5.1. A exposição do fato: este é apresentado sob os seus ângulos menos racionais e mais emocionais, mais espetaculares e mais sensacionalistas.
5.2. A “sociedade fala”: imagens e sons mostram detalhes e particularidades, principalmente dos personagens envolvidos.
5.3. A autoridade resolve: a autoridade reprime o Mal e enaltece o Bem e também anuncia as soluções para o problema apresentado. A autoridade tranqüiliza o povo, desestimula qualquer ação autônoma e independente do povo, mantém a autoridade e a ordem, submete o povo ao seu controle. Ao final da matéria, o veículo apóia a autoridade ou a critica, quando a mensagem da autoridade não é suficientemente controladora ou satisfatória aos interesses do órgão de comunicação.

Pronto. A transformação está completa. A realidade foi substituída por outra realidade, artificial e irreal, anti-real, e é nesta que o cidadão tem que se mover e agir. De preferência, não agir!


Adaptado por Luiz Geremias de ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

Quando as diferenças não são bem-vindas

Matéria na Rede Paranaense de Comunicação (RPC), no noticiário local que vai ao ar ao meio-dia, mostrou, na sexta-feira (23/3/), que a prefeitura da cidade de Apucarana (PR) está recolhendo "moradores de rua" e os despachando da cidade. Segundo a matéria, os mendigos estariam causando transtornos à cidade e incomodando os moradores. Para a prefeitura, os maltrapilhos estariam sendo "despejados" em Apucarana por prefeituras vizinhas, por isso ela os despeja de volta. Em resumo, o "crime" desses "não-cidadãos" seria não somente não participar adequadamente da suposta vida comunitária como também o de serem "estrangeiros", isto é, de outras cidades. Uma funcionária da prefeitura chegou a declarar isso claramente na matéria. Disse, com todas as letras, que não são da cidade, logo não são bem-vindos.

Com relação ao primeiro ponto, é claro que não participam, pois não são "cidadãos". Pelo menos uma parte dessas pessoas não quer esse epíteto. Há as costumeiras histórias dos que "caíram nessa vida" por desgostos, mas há os que, por mais que lhes ofereçam uma vida pequeno-burguesa, não a querem. Com relação ao fato de serem "estrangeiros", se enquadram na categoria dos "eles", em oposição ao "nós" comunitário da pequena-burguesia.

Não se pode ser singular, não se pode ser diferente, muito menos nômade, neste mundo ocidental – os ciganos provaram o anátema do Terceiro Reich por isso. Podemos ir mais longe e definir que, em casos como o de Apucarana, apenas são bem-vindos à cidade os "estrangeiros" que levarem dinheiro para gastar (boas aparências podem, talvez, ser descartadas nesse caso). Se não levam, cuidado, vão ser extraditados, depois de devidamente fichados na polícia.

Renda para ser gasta
Mais uma vez uma rede de comunicação perde uma excelente oportunidade de discutir profundamente um tema importante. A postura de objetividade não está em contraposição a uma proposta de reflexão sobre os temas abordados. Mas, aparentemente, não é culpa dos repórteres, editores, redatores: eles não têm muito acesso a conhecimentos que os façam pensar. As faculdades de jornalismo resumem seus currículos a "preparar o estudante para o mercado" e deixam, com isso, de formar bons profissionais. O máximo que a apresentadora do telejornal pôde dizer foi que se trata de "um assunto complicado". É pouco, é lugar-comum, não diz nada.

Os estrangeiros não são, historicamente, bem-vindos na sociedade ocidental. Sempre há um olhar de desconfiança e de franca hostilidade em relação ao estranho. Os gregos chamavam de bárbaros aos estrangeiros (bárbaros eram os que não falavam; balbuciavam), o que é irônico, pois boa parte da riqueza da antiga civilização grega parece ter sido fomentada pela presença de povos nômades, bárbaros.

A chave para abrir a porta da simpatia geralmente é o que já foi citado acima: renda para ser gasta. É a tônica da lógica do ocidente: você deve ser útil e funcional. O que você tem fora isso é supérfluo ou indesejável.

"Frequentemente alcoolizados"
Mais, a questão não é abordada pelo ângulo ético, resumindo-se ao estético, fato que foi bem explorado na matéria. A tal "Tolerância Zero" da cidade Nova York e o pastiche da mesma ordem promovido pelo governo Garotinho no Rio de Janeiro há alguns anos se pautaram pela mesma lógica. Era preciso dar uma aparência melhor à cidade. Retira-se os estranhos do convívio com os "normais" e, pelo menos esteticamente, tudo fica "legal".

A imagem de uma mão bem cuidada entregando uma passagem – o "bilhete azul" da expulsão da cidade – a uma mão suja, grossa, com as unhas negras, é emblemática. Se os mendigos fizessem as unhas ou usassem ternos – talvez se pudesse descartar a gravata nesses casos – tudo estaria bem. Se fossem "educados", se tomassem banhos regulares – não no chafariz da cidade, é claro – seriam aceitos?

Como não há muito interesse em entrar em contato com eles, a não ser através da famigerada Secretaria de Ação Social – criada para, principalmente, exercer a função de esconder ou expurgar a pobreza do território municipal – e da polícia, como "não há sociedade, apenas indivíduos" (frase célebre da neoliberal "dama de ferro" Margareth Thatcher nos idos dos anos 1980), é cada um por si. Se os maltrapilhos quiserem tomar banho ou vestir uma roupa melhor, que encontrem, por si sós, um chuveiro ou comprem, não com o dinheiro de esmolas, vestimentas adequadas.

Quanto ao fato, citado na matéria televisiva e em uma matéria do jornal Tribuna do Norte, de Apucarana, no mesmo dia, publicada na página B5, de estarem freqüentemente alcoolizados, isso não é justificativa para o desprezo. Inúmeros "cidadãos" de qualquer cidade se embebedam com freqüência e são bem aceitos. Nunca é demais lembrar do hábito de convidar um amigo para "tomar uma", prova de civilidade para a maioria dos "cidadãos". Álcool é droga consentida e seu uso geralmente não acarreta grandes problemas entre a pequena-burguesia. Pelo contrário, geralmente acompanha alegrias e é solução para tristezas.

Solução final
Na verdade, a rede de comunicação não pode aprofundar esses temas pois se dirige a um público que pensa que "diferença" é apenas torcer para um time rival ou escolher itens exóticos de consumo. Os próprios jornalistas que fazem as matérias pensam assim. É uma pena. Muito se perde desse jeito.

Não se trata, aqui, de apelar à prefeitura ou à polícia para que trate os moradores de rua a pão-de-ló, muito menos de solicitar à rede de comunicação ou ao jornal citados que deixem os mendigos em paz. Mesmo porque isso seria impossível: são esses estranhos que dão a identidade ao cidadão pequeno-burguês. É preciso tratá-los mal, é preciso ridicularizá-los e estigmatizá-los, é necessário expor suas caras e corpos deformados na TV para que todos que a assistem vejam maus exemplos que devem ser evitados e execrados. Assim, os telespectadores e leitores de jornais podem definir quem são, em oposição ao que não devem ser.

Trata-se, apenas, de pontuar essa forma estranha de vida que, geralmente, nos passa como coisa natural no dia-a-dia. E quando falamos de "forma estranha de vida" não falamos da vida dos maltrapilhos.

Em outros tempos, de forma mais exacerbada, essas práticas levaram à proposta daquilo que ficou conhecido e execrado como "Solução Final". No Rio de Janeiro da década de 60, um governo levou isso tão à sério que chegou, segundo se conta, a jogar alguns desses "entulhos humanos" num rio. Será que é preciso chegar a tanto para a imprensa tratar com seriedade a questão?

Por Luiz Geremias em 27/3/2007

A imagem do monstro no espelho

O debate sobre a criação do TV do Executivo continua fazendo emergir posições interessantes. A que mais tem ganho espaço na mídia comercial é a de oposição à proposta. Aparentemente, o Estado não pode veicular notícias e deve deixar esse encargo às TVs comerciais. Aí começam os problemas, ou melhor, continuam os problemas. O desejo aparente dos opositores da proposta é continuar forçando os governos a se sujeitar às políticas dos veículos comerciais e, certamente, evitar que os recursos que vêm sendo repassados a esses veículos por alguns governos sejam "desviados" para a TV do Executivo.

Vejamos o editorial da Gazeta do Povo, jornal curitibano, edição do dia 25 de março de 2007, que trouxe uma discussão sobre a diferenciação entre o bem e o mal. O bem se chamou "TV pública"; o mal ganhou o nome de "TV estatal". A primeira é dotada de virtudes por ser uma TV educativa, a serviço do enobrecimento cultural do cidadão. A segunda é maldosa porque é veículo de promoção de políticos. Em termos claros, a televisão estatal é o demônio; a pública, o anjo da guarda. Simples, não?

O blablablá sobre o bem e o mal
Deve-se lembrar que o jornal citado pertence ao mesmo proprietário de uma rede de televisão comercial, a Rede Paranaense de Televisão (RPC), a que retransmite a programação da Globo carioca e da Globo paulista para o estado do Paraná. Tanto o jornal quanto a rede de televisão têm ganho notoriedade mais por sua prática política militante do que por seus bons dotes jornalísticos. Francamente opositoras ao governador do Paraná, essas entidades nos ofereceram nos últimos anos, notadamente na última campanha eleitoral, provas de que não são sequer imparciais ou objetivas. O problema, nesse caso, não é tomar partido ou posição; é fazer isso e negar que faz.

O alvo do editorial é a TV Educativa do Paraná e todo o blablablá sobre bem e mal; TV pública ou estatal é secundário. A pancada seria dada de qualquer forma, bastando apenas uma oportunidade, e esta foi dada pela discussão nacional acerca da TV do Executivo, desmembrada de modo oportunista por alguns intelectuais orgânicos na oposição entre TV estatal e TV pública.

Limitações intelectuais ou má-fé
Cada vez que se coloca uma questão no âmbito da dualidade maniqueísta, o propositor não somente denuncia claramente seus interesses escusos, como, pior, acaba com má fama, desmoralizado. Tudo parece simples – a única tarefa é descobrir quem é está do lado do bem e quem comunga com o mal. Pior: nem essa empreitada é deixada para o leitor. O mal é entregue de bandeja, e o bem só pode estar do lado oposto, geralmente o que nomeia o mal. É simples, até demais. Tudo é uma questão de trilhar o caminho do bem.

A questão é que não há como qualificar essa simplicidade a não ser usando termos precisos. Todo aquele que propõe pensar seriamente um problema sob os parâmetros simplórios da oposição-estanque bem versus mal, em 100% dos casos, ou o faz por limitações emocionais e intelectuais ou por má-fé. Não há outras opções.


Malevolência da TV estatal
Para o editorial, a gestão da televisão pública "deve ser autônoma e independente, sempre voltada à prestação de serviços educativos no seu sentido mais amplo". Um bom exemplo, segundo o texto, seria a BBC inglesa. Marcelo Tas assina um artigo sobre o tema no caderno "Mais!" da Folha de S. Paulo do mesmo dia, no qual retira a BBC do mundo real e relaciona-a a uma beatitude que nenhum veículo, seja ele público, estatal ou comercial pode almejar. Lendo o artigo, pode-se ter a tentação de comprar uma passagem para o articulista ir a Londres tentar um emprego na hierática BBC, mas voltando à realidade, a certeza é que somente um tíquete para o País das Maravilhas seria adequado, pois a emissora "pública" tão louvada serve, também, de veículo de propaganda para políticos, como o foi, e aparentemente continua sendo, no caso da invasão do Iraque.

Voltando ao editorial, lemos que a televisão estatal, ao contrário, "caracteriza-se pelo financiamento exclusivo do Erário e pelo férreo controle imposto pelas estruturas governamentais de propaganda – comprometidas, portanto, com o fim de promover os feitos, de defender as posições políticas e de cultuar a personalidade dos que momentaneamente detêm o poder". Para melhor caracterizar a malevolência oculta por detrás da televisão estatal, o editorialista lembra Hitler, o stalinismo, Fidel Castro, Hugo Chávez e outros porta-vozes de um certo poder maligno. "Clara está", diz o editorial, "a diferença (...) entre o que é o bem e o que é o mal." Nada contra o financiamento do Estado a TVs comerciais, nada a opor ao férreo controle feito pelos anunciantes, é claro. A promoção de feitos, a defesa de posições políticas ou o culto de personalidade dos que momentaneamente ocupam o poder não foram atitudes maléficas quando, por exemplo, se relacionaram ao governo FHC ou ao governo Jaime Lerner.

Versão única versus o outro lado
A fórmula ignóbil de separar o bem e o mal foi usada pelo mesmo Hitler e por Stalin – ambos citados no editorial como maus. Logo, há alguma identidade entre o editorialista e seus maus exemplos. Mas também foi utilizada por presidentes estadunidenses, entre os quais o neoliberal Ronald Reagan, e ainda o é pelo "trombadinha eleitoral" Bush Júnior (o excelente termo é de José Arbex Jr.). Estes bons exemplos não ocorreram ao editorialista. Por algum motivo, escaparam à sua atenção. Já os "malvados" Hugo Chávez, Fidel Castro e o alvo direto do editorial, Roberto Requião, todos opositores do "bem" da pax estadunidense, não costumam usar essa fórmula de modo tão papalvo, mas são lembrados em menções desonrosas.

Se tivermos que pôr a questão em dois pólos, bem podemos afirmar que há uma oposição entre a "versão única", ditada pela grande imprensa, que responde, por sua vez, à elite estadunidense – aquela que invade países e mata civis, incluindo crianças, para lhes roubar o petróleo – e uma outra versão dos fatos – defendida por Castro, Chávez e Requião – que, até o momento, não cometeram nenhum ato equiparável às atrocidades cometidas pela citada elite e ocultados pela imprensa a ela subserviente.

Consumidores, não cidadãos
Note-se, então, que todos os adjetivos usados pelo editorialista para designar o bem e o mal podem ser postos no espelho. Se assim o fizermos, vamos perceber que tudo aquilo que é dito do mal – atributos dos defensores da TV estatal – podem ser assumidos sem reparos pelo que o editorial diz ser o bem.

Não é possível entender como a RPC, por exemplo, "faz bem à democracia", pois é uma emissora que nada tem de educativa, transmitindo basicamente manifestos políticos não declarados, além do entretenimento banal e indigente produzido para consumidores, não para cidadãos. E, embora a democracia seja pau para toda obra na defesa do discurso da hegemonia do Mercado, não pode ser considerada como idealmente sustentada por consumidores beócios.

O caminho do bem
Já a TV Educativa do Paraná pelo menos tem uma programação educativa, segundo as matérias da própria Gazeta do Povo. É só pesquisar para constatar – e não é preciso ir muito longe. O editorial saiu no dia 25 de março, como dito, mas, um dia depois (26/03), um professor ouvido pelo suplemento chamado "Caderno do Estudante", da Gazeta do Povo, dá como "dica especial" para a formação intelectual dos jovens vestibulandos dois programas criados e transmitidos pela Educativa paranaense. Entre eles, o programa Eureka, que já foi objeto de outra matéria elogiosa do próprio jornal há alguns meses. Como fica isso? Alguém esqueceu de avisar o professor e o editor do suplemento que a TV estatal do Paraná não transmite programas educativos...

Um canal de televisão, e isso deve ser muito bem lembrado, é uma concessão para o fornecimento de serviços de interesse público a uma determinada população. Em si, portanto, é uma TV pública. Por que a RPC não cumpre a sua função pública? Talvez esse seja o caminho do bem.

As monstruosidades apontadas pelo editorialista, ele as viu no espelho. Não há outra explicação possível. Todos que tentam opor o bem ao mal acabam confundindo seus próprios males e perversões com as dos outros.


Por Luiz Geremias em 3/4/2007

Considerações acerca das considerações de Carlos Lopes sobre a legalização da venda de drogas

Caro Carlos,

Temos coisas em comum. Somos cariocas, em primeiro lugar. Não sei se posso me dizer um carioca convicto. Não sei bem o que isso quer dizer. Se significa alguém que nasceu no Rio de Janeiro e mantém um namoro eterno com a cidade, então sou convicto de minha carioquice. Em segundo lugar, tudo indica que temos uma ligação afetuosa com o governador Sérgio Cabral. De sua parte, há declarada admiração. Da minha, há, acima de tudo, um sentimento de fraternidade com o “Serginho”, como o chamávamos há uns 30 anos atrás, nós, os que crescemos nos arredores da praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana, recanto de tantas brincadeiras e saudoso estádio de muitas peladas antes, bem antes, do metrô. Naquele lugar, que amo, no qual ainda espero voltar a viver, crescemos, eu e o Serginho Cabral, filho do nobre jornalista, além de tantos outros.

Tudo indica que, também em comum, temos o interesse em refletir sobre as drogas e uma preocupação constante com seus usuários e o destino que acabam tendo no mundo que cerca drogas e consumidores dessas substâncias. Nisso, o Sergio está também conosco. Afinal, tem se pronunciado com coragem e apontado contradições importantes na forma com a qual a sociedade ocidental lida com drogas e drogados.

Li o teu texto “Considerações sobre a legalização das drogas”, que me foi enviado por um companheiro de trabalho e, ao que tudo indica, também um parceiro de sonhos e projetos políticos. É sobre esse tema que venho falar, ou escrever, tecendo algumas considerações às tuas “Considerações”. O assunto é complexo e exigiria muitas e muitas linhas para ser tratado com abrangência e tenacidade. Não as vou escrever, pois teu texto foi bem objetivo e, para levá-lo na devida consideração e respeitar o leitor sem tempo para delongas teóricas, vou também ser curto e, o máximo possível, objetivo.

A referência de tuas considerações é uma entrevista de Sergio Cabral a uma revista. O tema é a legalização da venda de drogas. Ele disse que há um aumento da demanda por drogas. Você argumenta que é uma demanda involuntária, isto é, independente da vontade do sujeito. Creio que é preciso pensar isso com mais vagar.

Sem dúvida, você tem razão. Porém, se pensarmos a contemporaneidade, vamos perceber que não é apenas o drogado que tem demandas involuntárias. Aparentemente, te escapou à atenção que o sujeito de nossos tempos se caracteriza pela demanda involuntária. E por que você não viu isso? Aparentemente pelo motivo de que você se utiliza de um conceito subjetivo iluminista, ou com fortes identidades iluministas. Nele, o sujeito decide – racionalmente – o que quer, o que é melhor para si e para as pessoas que preza. Se tiver informações adequadas, se adquirir conhecimento sobre um determinado tema, pode evitar o que é ruim e escolher o que é bom. Pode negar-se a fazer algo que não queira e decidir – voluntariamente – o que quer, discernindo o que lhe faz bem do que lhe faz mal. Em outras palavras, podemos dizer que assim se torna um cidadão.

Ora, o sujeito que temos conhecido em nossos dias se caracteriza mais pela lógica do consumo do que pela diretriz da cidadania. E a lógica do consumo necessita, para ter sucesso e continuidade, de uma considerável inconsciência, ou seja, precisa fazer com que haja sempre, predominantemente, atos involuntários por parte do consumidor. Os estudos publicitários podem ajudar a entender bem isso. Ao comprar um maço de cigarros, uma droga lícita, o sujeito contemporâneo está fazendo uma escolha que vai muito além da busca voluntária por inspirar fumaça e expeli-la posteriormente.

Saindo do campo específico das drogas, o comprador de um carro está, da mesma forma, uma escolha que escapa ao campo da utilidade do veículo. Voltando às drogas, o consumidor de cerveja incorpora ao ato de consumir vetores que vão além da busca do prazer experimentado pelo sabor do líquido ou do efeito que proporciona, ou, mais ainda, da busca de companhias amistosas. Nos tempos idos da lógica iluminista, isso talvez fosse assim, mas agora, infelizmente, é.

Cada compra ou ato de consumo tem determinantes que não estão claros para o comprador. No jogo do consumo, absolutamente hegemônico em nossos tempos, o ato voluntário ou o ato utilitário não têm tanto valor. O que o consumidor busca é algo mais que o uso ou a utilidade que o produto tem em si, do prazer objetivo que lhe proporciona. Vale mais a marca, a imagem que está agregada a ela, do que propriamente a coisa-em-si. O objeto é utilizado para se chegar a algum outro lugar no qual o objeto não está. Isso nos leva a dizer que, na maior parte das vezes, o consumidor não identifica claramente as implicações que acompanham a adesão a uma marca, a uma imagem pessoal ou a um padrão de consumo. Não identifica conscientemente, mas o faz num outro plano – inconsciente, podemos dizer. Essa “mecânica” faz com que a maioria de nós seja constituída por consumidores contumazes, cada vez mais ignorantes de sua posição no mundo. Consumidores contumazes de coisas, drogas, pessoas, sonhos etc. Assim, a demanda pela droga é involuntária como a esmagadora maioria das demandas no mundo dos consumidores.

A questão também não envolve, matematicamente, o simples aumento de oferta determinante do aumento de demanda. Há, aí, uma interação qualitativa. A demanda tem um fator qualitativo agregado, que a oferta precisa captar. Por isso, há pessoas que usam determinados produtos e não outros. Mais que um ato racional, isso significa um ato simbólico, uma adesão imaginária a uma imagem. Por isso, há os que usam drogas ilícitas e os que não as usam, ou que usam drogas lícitas, ou, ainda, que fazem funcionar como drogas a religiosidade extrema, o trabalho obsessivo, a compra desenfreada.

Como todo consumidor, o usuário de drogas ilícitas é um consumidor de algo mais do que as drogas. Não é tanto a droga em si que tem valor, mas o contexto que a acompanha. Isso pode ser atestado por qualquer consumidor dessas substâncias, inclusive do álcool, tão tolerado por você e pelas autoridades. O consumidor contumaz de drogas, assim, é um consumidor como qualquer outro. Tem, o que não é uma diferença, uma especificidade de nicho de consumo: idolatra o negativo, venera as sombras, o dark side, busca o ambiente da contravenção, da representação de contrariedade com certas estruturas sociais, muito embora não tenha muito interesse em alterá-las. Esse é um vetor simbólico extremamente importante para entender o consumo da classe média, principalmente dos jovens dessa faixa de população.

O consumidor de drogas é, como todo consumidor contumaz, um impotente, algo como uma triste figura, um quixotesco viajante no mundo dos sonhos pré-projetados da sociedade de consumo - que, além de todos esses defeitos, ainda ingere substâncias deletérias para sua saúde física e mental. É adepto do que Jean Baudrillard chamou de fun system, um interessante jogo no qual todos estão na pior e tristes, mas brincam de estar se divertindo muito e felizes. Esse sistema de diversão é o mesmo que os une aos freqüentadores assíduos de shopping centers, aos “amigos do copo”, aos consumidores em geral. Logo, cá pra nós, o problema não é exatamente o de que os consumidores de drogas fazem escolhas involuntárias. Eles estão adaptados ao molde, apenas isso.

Que tal pensarmos que na cultura, nesses termos, está o problema? Em termos objetivos, seria melhor propor uma reformulação da proposta subjetiva de nossa sociedade. Se isso está incluído em sua proposta de transformar a realidade, estamos juntos.

Aí, a questão do vendedor se torna crucial. Como vamos mudar algo se temos inimigos tão fortes politicamente, poderosos economicamente e tão influentes na formação dessa cultura? Sabemos, exatamente, quem são? Podemos identificá-los? Falar dos vendedores sem lhes dar os nomes não adianta muito, não é? O comércio de drogas movimenta, aproximadamente, meio bilhão de dólares/ano, é muito dinheiro e dinheiro sem imposto. Dinheiro “lavado” diariamente no mercado financeiro, que paga muito mais do que cobra. Enquanto você, eu e boa parte da população paga impostos, esses vendedores não o fazem. Seus produtos são extremamente caros, pelo fator risco, e livres do fisco. Lucram muito, muito mesmo.

Eles têm a oferta, há a demanda. E o conteúdo simbólico do produto garante consumidores certos. Um dos conteúdos mais culturalmente arraigados é a da simulação da revolta, da rebeldia, do fascínio pelo ilegal, pelo desordenado, pelo sujo, pelo errado, pelo mal. Veja a geração “sexo, drogas e rock’n’roll”. Deterioram-se pessoal, cultural e politicamente, além de gastarem demais com suas “escolhas involuntárias”. No entanto, estão comprando uma idéia, um conceito, mais do que comprando drogas. Estão aderindo a um movimento de massa, um movimento de rebeldia. Rebeldia, já definiu bem Erich Fromm, é a postura do conformista. Logo, essa geração é caracterizada pela adesão a uma rebeldia fictícia, enquanto, na prática, são bem comportados ao extremo. Ou seja, não se rebelam contra nada a não ser contra sua capacidade de transformar a realidade. A cultura contemporânea, profundamente marcada pelo “sexo, drogas e rock’n’roll”, é uma cultura de simulacro de revolta, mas, na verdade, absolutamente conformista. Sua oferta subjetiva para a demanda juvenil de transformação da realidade é, em suma, ouro de tolo.

Há, então, os vendedores, os que estão no topo, lucrando muito com essa cultura. Mas, há, também, inúmeros agentes dessa cultura agindo com a melhor das fés, querendo apenas tirar proveito da situação, se dar bem, ser amados e desejados etc. A estrutura é, desse modo, bastante firme. É muito difícil mexer nela.

Nesse sentido, a discussão sobre a legalização da venda e do uso de drogas, proposta valentemente pelo governador Sérgio Cabral, é não apenas pertinente, mas oportuna e indispensável. E por quê? Enquanto transformamos a realidade, há que se pensar que essa empreitada é difícil, trabalhosa e, principalmente, demorada. Há que entender que muitas coisas estão acontecendo. Que jovens pobres e nem tão pobres estão rodando a cidade, transportando e vendendo produtos ilícitos. Expõem-se a problemas físicos graves, a situações de risco letal e, talvez mais que tudo, a uma idiotia, um conformismo sócio-político revoltante.

Uma proposta de legalização traria, pelo menos, uma quebra na marca subjetiva ligada ao consumo de drogas. O fascínio pelo proibido, pelo ilegal, pelo marginal, perderia força, ou teria que reconfigurar drasticamente sua proposta. Pode, assim, ser uma boa idéia.

Tenho algumas objeções críticas em relação a outras considerações feitas por você.

Em primeiro lugar, a proibição do álcool nos Estados Unidos dos anos 20 não é uma referência tão estúpida quanto você quis sugerir. A articulação política, citada por você, para a aprovação da Lei Seca, ou Lei Volstead, não estava suspensa no ar, fazia parte de uma sociedade com uma lógica cultural que, naquele contexto, facilitava medidas como essa. Para aprofundar esta questão eu teria que gastar muitas linhas, e não creio isso adequado nem necessário no momento. O fato é que a proibição facilitou a lucratividade de criminosos e sugeriu o caminho do crime para inúmeras pessoas. Tudo pela estupidez da Lei, concordo com você. Não gosto de álcool, preferencialmente não freqüento lugares nos quais se bebe álcool nem gosto de lidar com pessoas que consomem essa substância, ao menos quando a estão consumindo. No entanto, creio que a proibição somente faria o que fez: elevar os ganhos de criminosos – de grandes criminosos – e excitar as pessoas – notadamente as mais novas – a provar isso que, por ser proibido, se torna atraente.

Não tenho expectativas, porém, de que grandes criminosos apenas o deixem de ser por conta de problemas nos negócios, assim como sei que os vendedores de álcool não se tornaram anjos com a queda da Lei Seca. Não acho Roosevelt um grande exemplo a ser seguido, também. Não morro de amores pelo New Deal e compreendo essa iniciativa como uma estratégia estadunidense de rearticulação interna para sua ofensiva externa. E a sociedade do consumo na qual vivemos hoje, esse Império descrito por Negri e Hardt, teve uma boa arrancada com Roosevelt e seu New Deal. Se compreendo algo como “mudar a realidade”, compreendo que essa sociedade com seus valores aéticos e amorais precisa ser repensada e, sem dúvida, mudada.

Discordo de você também do seu argumento de que a proposta de legalização seja, para muitas famílias de favelas e periferias, “sinal de que não podem contar com a ajuda do Estado – ou, pior, o sinal de que o Estado é seu inimigo na luta para salvar um ente querido”. Com a proibição, essa gente não apenas não pode contar com a ajuda do Estado, como principalmente o tem contra e, conhecendo as práticas policiais, o tem como um assassino em potencial de seu ente querido envolvido com o consumo de drogas. Hoje, sem dúvida, o Estado e a coletividade não somente estão se lixando para essas vidas, como as perseguem raivosamente, com sangue nos olhos. Isso mudará com a descriminação? Não é possível afirmar com certeza, mas que com a situação atual isso não mudará, disso podemos estar certos.

Em terceiro lugar, a mera crença de que a dependência de drogas é um atentado à liberdade individual não está bem posta no seu texto na medida em que você não apenas tolera como crê que ser um “amigo do copo” é algo simpático. Nem todo usuário de drogas é dependente delas – o é mais do significado de usá-las do que delas, reitero – do mesmo modo como nem todo consumidor de álcool vive alcoolizado. As duas situações se equivalem e se um consumidor é tomado por você como necessariamente dependente e o outro não, há algo errado aí.

Fico um tanto indignado ao perceber que o álcool é vendido livremente, mesmo sendo pernóstico para a maioria de seus usuários, que leva à dependência de forma mais ativa e cruel, enquanto as demais drogas são todas de uso proibido. A sua experiência com usuários de álcool é bastante otimista, pelo que pude perceber. A minha, porém, é bastante pessimista. Vi muita coisa ruim estimulada pelo álcool, vi e vejo ainda. Vejo muito bebedor que se define como “social”, e que enleva o valor afetivo de beber entre amigos, imbecilizado, moral e eticamente bestializado pelo uso supostamente civilizado dessa droga. Se falarmos de adolescentes, isso se torna bastante drástico. O Sérgio Cabral, quando ainda era o Serginho e morava “no Morrinho” – como era conhecida a rua Azevedo Pimentel, em Copacabana, certamente viu também muitos amigos e amigas, pais e mães de amigos e amigas, parcial ou totalmente destruídos pelo consumo de álcool.

Você usa a heroína e o crack por todo o texto como exemplos extremos do malefício das drogas. São exemplos extremos que têm nitidamente a intenção de não admitir contestação. Essa prática é comum aos médicos, todos sabemos. O alarmismo se justifica como um alerta em benefício da saúde, diziam alguns que conheci. No entanto, os malefícios do álcool também são extremos e, não tenho qualquer dúvida, pelo que pude entender em minhas quase cinco décadas de vida, mais sérios do que os causados pelo uso de drogas como a maconha. Porém, você diz que a maconha é incensada e apresenta um testemunho pessoal de danos causados a uma certa pessoa ou pessoas. Também conheço gente que se deu muito mal por iniciar muito cedo o uso dessa droga e por usá-la em demasia. Conheço muito mais gente que padece pelo uso de álcool. Trabalhei no Instituto Philippe Pinel, aí no Rio, e fiquei alarmado com a freqüência das internações por dependência de álcool e, mais, com o estado lastimável dos pacientes alcoólicos. Se me permite, entendo a maconha como uma substância bem menos perniciosa que o álcool e de efeito bem mais agradável para um consumidor não contumaz. Entendo também que esse aspecto tem sido levantado por algumas pessoas, o que não significa incensar nem glamourizar o seu uso.

Em tempo: o álcool não é admitido, tolerado e incentivado por ser uma droga branda. Isso não é. Mas, por motivos culturais bem delineados. Se tivéssemos sido colonizados pelos índios mexicanos, por exemplo, quem sabe o chá de peiote fosse tolerado e incentivado. O álcool nasceu no alvorecer da civilização ocidental – a cerveja era consumida antes de que se soubesse o valor da escrita, o vinho era cultuado entre os gregos e os romanos – e é um integrante importante dessa cultura ocidental, por motivos que posso explanar em outra oportunidade.

Isso não o faz melhor do que a maconha ou outra droga, com a exceção da heroína, que causa uma dependência mais trágica que a do bebedor contumaz, ou do crack, cujos efeitos deletérios são rápidos e fulminantes. E mais: essa droga, como todas as outras, leva a ambientes propícios para o alto consumo e, como as demais, necessita sempre de doses maiores para fazer efeito. Como se costuma dizer da maconha, leva também às tais “más companhias” de outros drogados ou de quem venda essa e outras drogas. Se formos levar a sério o conceito de droga, dono de botequim deveria ser considerado traficante. E – me permita uma revolta extrema, mas justificável –, quem as vende para crianças e adolescentes deveria ser executado em praça pública.

Parabéns a você pelo texto instigante, que dá oportunidade de pensar esse tema tão delicado e polêmico. Parabéns ao Serginho, hoje governador do estado, que tem como capital e sede do governo, a cidade na qual nasci, e que amo muito, e na qual meus pais, irmã e meu filho vivem, pela iniciativa de propor essa discussão. Um abraço fraterno aos dois.


O texto de Carlos Lopes foi publicado em http://www.umes.org.br/umes/noticias.php?ID=250 e no jornal Hora do Povo, edição 2557.


Luiz Geremias, abril de 2007

As várias faces da barbárie

Acabo de rever a matéria da revista Veja sobre a morte terrível de um menino arrastado por assaltantes em um carro no Rio de Janeiro, acontecido no mês de fevereiro – a matéria traz a data de 14/02/07. Mesmo passados mais de três meses do caso hediondo e da publicação da matéria, entendo que é importante falar a respeito, ainda que
tardiamente.

Trata-se de um fato escabroso. Porém, a matéria é tão escabrosa quanto o fato. E um horror não justifica o outro. Eu, como pessoa, posso, num momento de pungência, dizer qualquer coisa sobre o caso, inclusive que os assassinos deveriam ser picados em pedacinhos, queimados vivos. Qualquer um de nós pode dizer isso, dada a aversão que o crime provoca. Mas, um veículo de comunicação deve ter mais cuidado ao tratar de temas como esse. O mesmo se aplica a qualquer instituição democrática, ou deveria.

O apelo sensacionalista, raivoso, com sangue escorrendo pelas páginas, é sinal de barbárie. De uma barbárie análoga à do assassinato. Assim como foi um ato de barbárie os policiais militares obrigarem os assassinos a mostrar o rosto para a foto (acima) que ilustra, em destaque, a matéria – representam uma instituição democrática, lembremos bem. E selvageria igual foi cometida pela revista ao exibir a foto com destaque. O título da matéria "Sem limites para a barbárie", pode ser aplicado ao crime horrendo, ao ato dos policiais e à matéria como um todo. Realmente, parece não haver limites para a barbárie...

A revista "assina em baixo"
Veja-se que não há como buscar atenuantes para o que foi cometido contra a criança. Não é fácil entender o que levou os assassinos a um ato tão horripilante. Seria compreensível se os pais do menino, se tivessem oportunidade, se vingassem dos criminosos com requintes de crueldade. Seria compreensível, não elogiável, se for levado a sério o que se defende como civilização. O que não é compreensível, o que não se pode aceitar, é que a revista tenha publicado uma matéria tão bárbara, tão boçal, tão abominável, abominável a ponto de se pôr ao nível dos "monstros" que deplora. Aliás, o jornalista Marcelo Bortoloti, que qualifica os assassinos como monstros, bem pode receber a mesma qualificação.

O cúmulo, porém, está em trechos da matéria, com letras em itálico – o que provavelmente indica que são frases de alguém. A primeira delas é emblemática da estupidez, da bestialidade que, não sem saberem o que estão fazendo, o jornalista e a revista incitam. Nela, pérolas do antipensamento, do ódio ao pensar: "Chega de explicações. (...) O martírio público do menino João Hélio está destravando a língua de dezenas de explicadores. São os mesmos que passaram a mão na cabeça dos ‘meus guris’ que desciam ao asfalto para subtrair um pouco do muito que os ricos tinham e, assim, sustentar a mãe no morro. Chega de romancear o criminoso, de culpar abstrações como a ‘violência’, o ‘neoliberalismo’, o ‘descaso da classe média’...".

Ora, há que se concordar que não há explicações para esse ato. Na verdade, não há explicações adequadas para nenhum ato, simplesmente porque, como o texto em itálico sugere, há sempre formas diversas de esclarecer qualquer coisa, sempre insuficientes e, não raro, mentirosas. O caso não é para explicações mesmo. No entanto, o autor daquela diatribe textual não está simplesmente dizendo isso. Está atacando toda e qualquer forma de pensar. Para ele, ou ela, não há que se compreender mais nada: devemos agir movidos pelo ódio e ponto final. Devemos ser tão cruéis e desumanos quanto os assassinos, quanto Hitler (que é citado em outro trecho do texto), ou quanto os bolcheviques (retirados desnecessariamente do baú da história, quando há exemplos bem mais sórdidos e recentes de ações dos heróis estadunidenses). O texto, se é de algum leitor, deveria ser publicado, no máximo, na seção de cartas, ilustrando a revolta de um cidadão ou cidadã em relação ao horror do crime. Jamais fazer parte da matéria. Assim ocorrendo, a revista "assina em baixo" a barbárie.

Surgiram do nada
Creio ser desnecessário listar toda a seqüência de outros dislates contidos no texto da matéria. São linhas e linhas, nas quais o indizível sofrimento da família é traduzido como um dramalhão, contrapostas a outras muitas linhas nas quais as qualificações de monstruosidade redundam. A família merecia mais respeito, o leitor idem.

O crime é realmente de uma barbaridade provavelmente nunca vista na história policial brasileira. A matéria é certamente uma das mais estúpidas e bárbaras já produzidas na história da imprensa brasileira. Duas faces da barbárie que, se não podem ser negadas ou esquecidas, devem nos dar forças de lutar para que não ocorram mais.

A sociedade brasileira mostra, há muito, sinais de barbárie. Se esta fosse apenas, ou principalmente, apanágio dos "meus guris", o problema seria de fácil resolução. Mas, não é. Não existe o tal "descaso da classe média". O que existe é uma tendência irrecorrível a entender os "meus guris", bem como seus pais e avós, ou como coitadinhos ou como monstros. Só com essas duas faces podem ser reconhecidos. São, também, abstrações.

Essa forma de entender os "meus guris" parece trazer uma interpretação terrificante do dito cristão "ama teu próximo como a ti mesmo": se o próximo não é nem um pouco parecido com o "ti mesmo", como amá-lo? Como sequer lhe reconhecer a existência? Quem não se parece comigo, então, passa a ser apenas uma "imagem mental subjetiva, irreal", que não é mais do que um sinônimo de abstração. E ali, no abstrato, como bem intuiu o texto em itálico, qualquer coisa pode ser posta, principalmente paixões bárbaras e ódios.

Há uma grande semelhança entre o texto da revista, destinado à abstrata classe média, e o modo pelo qual Edward Saïd afirma que os sionistas estadunidenses entendem os palestinos. Saïd nos recorda de um livro escrito por Joan Peters, From Time Imemmorial, no qual a autora afirma que não havia palestinos na Palestina antes de 1948. Eles só apareceram mais tarde, explodindo por aqui e ali, como por encanto, por pura maldade. Da mesma forma, como aparições demoníacas, gente como os assassinos do menino João Hélio, surgiram do nada. Não se sabe como, pois não havia ninguém nas favelas...

Por Luiz Geremias em 29/5/2007