27 de março de 2009

Que caretice, hein?


Costuma-se refletir muito pouco sobre os “movimentos jovens” dos anos 60-70. Quase nada se pensa porque o significado e o sentido desses “movimentos” são quase consensualmente entendidos como transformadores, como sementes de transformações e revolucionários.

Alguém lembra Elvis, vem à cabeça o desafio de suas reboladas diante das câmeras de televisão, que só lhe podiam captar da barriga para acima. Ou o punk, com suas ultrajantes aparências, seu vocabulário chulo e sua antimúsica, pura rebeldia, pensamos. Isso sem falar da língua de Mick Jagger, das seringas de Lou Reed, da poesia e das bebedeiras de Jim Morrison, de Bob Dylan e suas baladas pacifistas.

A impressão que se tem é que houve uma brutal modificação dos costumes e, principalmente, que foi gerada por uma geração de jovens. Que o mundo adulto caiu por terra e confiar em alguém com mais de 30 passou a ser quase crime inafiançável.

Bobice, diria eu. Não houve nada disso. E, hoje, com a compreensão que é possível ter da sociedade gerada a partir da guinada jovem, pode-se dizer mesmo que não houve qualquer alteração a não ser a eclosão de uma sociabilidade de total controle através do que se pode definir genericamente como “cultura consumista”.

Falemos do “velho e bom” rock’n’roll. Apesar de sabê-lo umbilicalmente atado à produção da velha indústria cultural, ou seja, moldado e difundido por meios de comunicação de massa, ainda há quem queira ver nele uma libertária linguagem universal da juventude.

Trata-se, na verdade, de uma linguagem da juventude, mas claramente estereotipada e nada libertária. E mais: “representa” uma crítica ao sistema industrial, à sociedade moderna “sólida” – num termo de Zygmunt Bauman – etc. etc. No entanto, não é, efetivamente, uma crítica, mas, repito, uma representação. E há uma distância abissal entre uma coisa e a sua representação. Razão pela qual a subcultura roqueira deve ser entendida como conformista. Jamais intentou transformar ou revolucionar nada na medida em que resolveu representar uma guerra ao invés de fazer a guerra.

Surge, nos sixties, a crítica jovem pré-moldada, a absorção infantil dos elementos de reforço ao sistema capitalístico, como se estes fossem ácidos corrosivos para sua base – mas o ácido lisérgico, na verdade, não corrói nada além da cognição do usuário. Nelson Rodrigues, com seu muitas vezes brilhante reacionarismo, já dizia que o jovem tem todos os defeitos do adulto com a adição da inexperiência. Sem dúvida, ao estudar a “revolta jovem” e seus sucedâneos, é preciso concordar com ele. E, da mesma forma, entender, com Erich Fromm, que o rebelde só pretende tomar o lugar do inimigo para ser como ele.

Se formos mais longe, vamos nos alarmar, pois toda a mentalidade sofisticada de consumo que surge a partir dessa “revolta” pode ser observada, hoje, em todas as idades. Ser jovem passou a ser bom. Melhor que bom: obrigatório. Não qualquer tipo de jovem, é claro. Como lembra Beatriz Sarlo, o jovem Fidel Castro não tem nada a ver com o “adolescente congelado” Mick Jagger. A juventude ideal e obrigatória destes tempos pós-modernos é a de um robotic puppet disciplinado para a rebeldia, que pretende parecer revolucionário, mas jamais fará uma revolução.

Assim, pode-se ver, se consegue mudar todos os dias, mantendo tudo como está, ou seja, sem alterar um milímetro a realidade. Em outros termos, isso se chama “conservadorismo”. E, em palavras mais diretas, era exatamente isso o que a “revolta jovem” dizia combater. Que caretice, hein?

Luiz Geremias

26 de março de 2009

Haja sanidade

Diz Zygmunt Bauman que a sociedade de consumo só pode prosperar enquanto conseguir tornar perene a insatisfação de seus membros, isto é, enquanto puder promover a infelicidade deles. Em outros termos, o que é feito é a promoção dos desejos e a sua quase imediata frustração. Isso é muito complicado, pois tudo parece indicar que o propósito é a felicidade, já que as falas e discursos publicitários seguem nesse sentido.

A proposta é a da satisfação de todos os desejos a partir da aquisição de objetos. Ora, se isso fosse possível, a própria proposta não se sustentaria, pois o consumidor satisfeito não compraria mais nada, não consumiria. Logo, não é a satisfação que se propõe, mas a eclosão de mais e mais desejos que jamais serão satisfeitos a não ser momentaneamente e, com toda certeza, insatisfatoriamente, dada a quase instantânea obsolescência dos objetos adquiridos. Não há qualquer perspectiva de satisfação, pois isso solaparia a lógica do sistema. Há, de modo oposto, a promoção da insatisfação.

O consumidor se encontra num dilema terrível. De algum modo, como a felicidade é a promessa fundamental, ela se torna praticamente obrigatória e a infelicidade, assim, se torna praticamente um crime (ou, no mínimo, um desvio pecaminoso, diz Bauman) – Jean Baudrillard já havia enunciado isso há décadas, falando do fun system. O sujeito feliz é a meta, mas o sujeito infeliz é a realidade essencial. Dupla mensagem que enlouquece e que obriga o sujeito a se sujeitar a uma vida infeliz plena de afirmações de felicidade.

"Pânico moral"
Haja sanidade. Mas, afinal, sanidade é tudo o que não se espera do consumidor. Não é, definitivamente, uma virtude pós-moderna.

A insegurança básica do consumidor é o terreno sobre o qual viceja aquilo que Bauman chama de "pânicos morais". Trata-se de terrores difusos que se concentram em alvos fixos, específicos e tangíveis, porém irreais – "O erro nunca está no próprio sistema, sempre foi alguém que cometeu algum desacerto ou crime", lembra Robert Kurz.

Esses alvos, com incrível freqüência, são colados às "pessoas sem valor de mercado", aos "consumidores falhos", pessoas que, por diversos motivos, não se conformam ou se adequam às atividades de consumo e devem representar, para os consumidores padrão, tudo aquilo a ser evitado (pessoas que, se possível, devem sumir da vista). Genericamente, são conhecidos como "subclasse", um agregado de pessoas declaradas fora dos limites de classe social, com exíguas chances de integração. Alguns os definem como lumpens, mas no frigir dos ovos não passam de "bodes expiatórios" aos quais a sociedade transfere seus pecados e, por conta disso, os apedreja.

Um bom exemplo vem do Rio de Janeiro, onde Eduardo Paes, o novo prefeito (que parece seguir os ensinamentos do antigo prefeito Cesar Maia, muito embora, por prováveis motivos circunstanciais, tenha sido eleito como oposição), inventou o slogan "Choque de Ordem" para denominar o ataque prioritário a camelôs, invasores e moradores de rua, mas também a outros infratores menores, como motoristas que estacionam nas calçadas e também a construções irregulares. O slogan identifica uma ação fundada na promoção de um "pânico moral" e na crença infantil de que, sumindo da vista, essas "pessoas sem valor de mercado" trariam bem-estar aos consumidores "com valor de mercado".

Ordem, insegurança e terror
O "Choque de Ordem" está fundamentado na ideologia da "Tolerância Zero", criada em Nova York há aproximadamente uma década e já evocada pelo ex-governador carioca Anthony Garotinho para criar uma "sensação de segurança" na população. O novo prefeito não parece muito original.

De forma clara, esse zeramento de tolerância se define por perseguir e encarcerar os pequenos criminosos, o que deixa em aberto se os grandes criminosos seriam também perseguidos. Na prática, parece que não seriam, não são e nada indica que efetivamente o serão. Para o grande crime, a tolerância parece ser mais folgada. Disso, não é ordeiro falar, pois é chocante demais. Não é muito polido dizer que o tal "Choque de Ordem" não é mais do que a expulsão dos pobres de lugares com potencial para especulação econômica e imobiliária.

Em resumo, no "Choque de Ordem" os personagens são principalmente os camelôs, os desempregados, os invasores e os moradores de rua, isto é, os maus consumidores. O objetivo é fazer crer aos consumidores cariocas que são esses pobres-diabos que causam a insegurança. E mais: que uma bela imagem urbana, "ordeira", é fator de segurança. Doce e trágica ilusão.

Ora, como dito anteriormente, ao mesmo tempo em que a vida insegura é a essência desta sociedade, há os que nos querem fazer crer o oposto. E mais: que o que atrapalha a segurança são os "outros", os diferentes, ou, bem se pode dizer, os maus consumidores, os pobres que usam as calçadas para vender todo tipo de coisas ou simplesmente para dormir. Para eles, diz Bauman, tolerância zero.

As coisas são tão loucas num mundo assim que é possível mesmo afirmar que quanto mais ordem, mais insegurança, quanto mais "segurança pública", mais terror. Mas, esse é o jogo e é preciso saber jogar com essas regras sem enlouquecer. De todo modo, é sempre útil saber que nos estão enganando e que a nossa loucura e a nossa estupidez são fundamentais para a sobrevivência dessa lógica social. Saber disso faz sofrer, mas ao menos nos devolve um pouco de sanidade.

Mais insegurança, mais infelicidade
Com alguma sensatez, é possível apontar para a chamada "grande imprensa" como a difusora dessa tramóia discursiva. É nos jornais, nas rádios, nas TVs e nos portais noticiosos que a "população ordeira", os "consumidores com valor de mercado", ficam sabendo que a cidade será "chocada pela ordem". E, principalmente, essas práticas são noticiadas sem qualquer abordagem crítica: muito pelo contrário, costumam receber incentivos esperançosos do tipo "a iniciativa é louvável". Nisso consiste, em grande parte, a objetividade e a imparcialidade desses respeitáveis veículos.

As empresas de comunicação se definem como aliadas da ordem consumista. Promovem o medo e a insegurança, minam a sanidade. São parceiras na proposição fantasiosa de que, adequando-se a essa ordem, o sujeito encontrará a satisfação, embora essa não seja a verdadeira proposta. Nem ao menos a formação de uma consciência crítica a grande imprensa tem promovido, o que seria a sua função pública.

Nesse sentido, o jornalismo cada vez mais se aproxima da publicidade, criando frases e arranjando notícias especificamente para conseguir dois objetivos fundamentais: desviar a atenção da insegurança do consumidor, dirigindo-a para alvos fantasiosos, e patrocinar mais insegurança e mais infelicidade mascarada de felicidade. Mesmo que pareça anacrônico, não é demais repetir: haja sanidade para lidar com isso.

Por Luiz Geremias (20/1/2009)

17 de março de 2009

A tropa da elite

Em 2006, no ano passado, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o policial militar André Batista e o ex-PM Rodrigo Pimentel, agora pós-graduado em Sociologia, escreveram um livro no qual contam as aventuras e desventuras dos policiais que “arriscam a vida no cumprimento de seu dever constitucional, com dignidade e coragem”. No entanto, parecem reconhecer os “casos sucessivos de corrupção e brutalidade [que] feriram de morte, no Rio, a confiança da sociedade em suas polícias”. O livro é cruel, como o primeiro texto faz questão de definir. Chama-se “A Elite da Tropa”.

No prefácio, há um conceito interessante que, por si só, pode justificar a edição do livro: para que um objetivo como o da reconciliação entre sociedade e polícia seja possível, “é preciso olhar nos olhos a verdade e reconhecê-la, sem meias palavras e subterfúgios, sem hipocrisia e retórica política”. Muito bom. A mensagem é clara: ao invés de tentar provocar o ódio, a denúncia das atrocidades eméritas do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE), se busca o luto, a conscientização da perda, da desgraça que ronda os participantes da “guerra muito particular” entre policiais e pobres no Rio.

O que os autores pretenderam, então, é fazer o que Fausto Wolff propõe na epígrafe do livro “O Campo de Batalha sou Eu”: É arrasador rasgar a realidade e suportar a verdade que ela encobre. A surpresa pode ser fatal, entretanto é preciso tentar; decidir entre o exercício da morte ou o aprendizado da vida. Belas palavras, fulgurante proposta. Não é possível saber se os autores conseguiram o que propuseram, ainda. No entanto, é elogiável a intenção.

Tomando essa intenção no seu sentido mais radical, propondo que, se é para suportar a cruel realidade, é preciso dizer outras coisas ainda sobre a polícia, escrevo este texto. Já se falou, como exposto, da Elite da Tropa e, num filme lançado recentemente, se falou também numa Tropa de Elite – referida ao mesmo BOPE. Não se falou, ainda, em uma Tropa da Elite. Os enfoques são diversos, vértices diferentes de observar o mesmo fato ou fenômeno.

Tropas insanas

A “tropa de elite” remete a um destacamento da polícia militar que se destaca pelo nível de especialização em suas ações. Especialização, de acordo com os relatos do livro, em, principalmente, agressividade e crueldade. Mas, não somente isso. São especialistas em guerra. Guerra contra pobres.

De acordo com o filme, são policiais honestos. Honestidade não inclui, nesse caso, o matar e torturar. Tudo em nome da lei. O problema pode estar na ilusão de que a lei atende à sociedade. Problema maior é estar a serviço daqueles que lucram com a lei.

A “elite da tropa” remete a algo semelhante: os que se destacam na elite por tornar pública a vida e os sentimentos da “tropa de elite”. Nessa perspectiva se valida a proposta do livro. Não se valida, porém, acreditar que a guerra é contra o comerciante de drogas no morro. Será que alguém ainda acredita que os US$ 500 bilhões/ano que são movimentados no mundo pelo movimento de venda de drogas vão para as mãos dos pobres?

A posição da polícia no Rio de Janeiro é das mais delicadas. É muito difícil justificar suas ações. Menos complicado é entender o porquê da sua existência e o sentido de suas práticas. Tanto o filme, quanto o livro, nos dão versões localizadas, internas à “tropa”. De forma transversa, podem nos dar indícios, também, de sentidos singulares de subjetividades. Os soldados de elite parecem ter um “amor pelo Brasil” e uma convicção de que são predestinados a combater o crime acima da média. Há uma crença obsessiva de que se a realidade puder ser controlada pela polícia, o crime cessará. Uma idealização algo infantil do poder organizativo e democrático da lei e, principalmente, de seu sentido sócio-político. Como indivíduos, o pessoal do BOPE seria idealista: o crime é um câncer e eles a cura. Só que ninguém lhes explicou que extirpar o sintoma não acaba com a doença. É muita insanidade acreditar nisso.

Uma elite a serviço da elite?

Por esses singelos motivos, o “homem da roupa preta” (o BOPE se veste assim) que se julga “elite”, não é mais do que bucha de canhão da verdadeira elite. É, levando em conta o treinamento animalesco descrito no livro e encenado no filme, uma fera que a elite treina e envia para as comunidades pobres. Em vez de “tropa de elite”, são, fundamentalmente, a “tropa da elite”. E nem mesmo os que o livro considera a “elite da tropa” parecem entender isso com a devida seriedade.

Pode-se argumentar que os “traficantes” (por que os vendedores de bebida não são também assim chamados?) são também “feras”, cruéis etc. E o são. Não é, como muitos argumentam, adequado dizer que simplesmente são “vítimas da sociedade”. São, isso sim, como já disse em meu trabalho “O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma guerra a Beira-Mar”, bons alunos.

O mundo corporativo, o das grandes empresas psicopáticas (o filme Corporation é bem ilustrativo para entender isso), ensina todos a ser comerciantes sem escrúpulos, a não considerar o outro, a fazer tudo o que for possível para obter vantagens, a destruir o que for se isso resultar em lucro. Depois, com uma razão cínica pernóstica, solta as feras fardadas para “conter” as feras faveladas de short e sandálias.

Os policiais do BOPE retratados no filme, com seus ideais de conduta e ferocidade na defesa da legalidade, bem poderiam ser considerados os mais sãos da história, não fosse o delírio presente nesses ideais. Enquanto acreditam piamente na força da lei e que matar é a solução para as feras pobres, agem de forma a preservar e perpetuar não apenas a injustiça, mas de modo a perpetuar a violência e insuflar mais ódio. As elites agradecem à “elite da tropa” e à “tropa de elite”.

Exercício da morte

Os tais “traficantes” são o correlato dos terroristas do Jihad ou da Al Qaeda. São o “eles” do “choque entre civilizações”, a versão tupiniquim do “império do mal”. E, para combatê-los, há essa “tropa da elite” chamada BOPE, uma versão nossa dos “marines”. A tal “classe média”, no meio do fogo, geralmente julga que essa tropa está a seu serviço. Tola ilusão. Ela apenas acirra o problema que, como sabemos, tem estourado nessa camada social e, tudo indica, continuará a estourar com cada vez maior ódio.

Mesmo que se levem em conta as boas intenções dos autores do livro, não nos parece que a verdade esteja sendo olhada nos olhos, sem meias palavras. Também é um tanto duvidosa a intenção do diretor do filme de, segundo palavras dele no canal Brasil (Globosat), de acirrar o debate. Faltou algo, o mais importante.

Parece ter ficado de fora a surpresa quase fatal que Fausto Wolff citou. No fim da história, fica a dúvida se não se decidiu pelo exercício da morte ao invés do aprendizado da vida.


Luiz Geremias

14 de março de 2009

A rebeldia consentida do underground



Um tema que merece atenção especial neste início de século é o da cultura. Houve, notadamente nos últimos 50 anos, uma exacerbação de investimentos no plano da cultura, com a midiatização eletrônica de informações e entretenimento. Foi nesse período que surgiu um elemento fundamental para a efetivação dessa “virada” que transformou o sentido da cultura: a contracultura, ou o underground. É sobre esse elemento que vamos falar.

A cultura da modernidade, eminentemente letrada, não podia dar sustentação a um sistema baseado no consumo. A razão tem uma natureza instrumental que não pode facilmente conter elementos subjetivos hegemonicamente postos em vantagem com relação aos determinantes objetivos. Racionalmente, alguém compra algo com um objetivo utilitário e não com interesses de localização subjetiva no imaginário sociocultural. Essa lógica é inadequada para uma sociedade fundada no consumo e precisava sofrer algumas alterações. O surgimento do underground foi bastante adequado para operacionalizar essas alterações.

Se antes uma compra era realizada por motivos racionais, após essa “virada cultural” passou a ser determinada por vetores subjetivos e a racionalidade entra em segundo plano como “racionalização”, isto é, como uma “desculpa” que o consumidor dá a si próprio ou a outros para a compra. Nessa compra, são agregados valores subjetivos que posicionam o indivíduo perante si e a sociedade, ofertam um lugar identificatório.

O underground é uma manifestação cultural que se formulou estimulada por demandas de adolescentes, essencialmente como oferta a essa demanda. A adolescência não existia antes do final do século XIX e esse status de adolescente foi criado nos tempos da estratégia higienista como um momento crítico da vida do ser humano. Sem tomar em conta o contexto histórico do surgimento dessa designação, o saber ocidental marcou a adolescência como um estágio “natural” do desenvolvimento humano, numa atitude eminentemente marcada pela mentalidade positivista. Foram os sujeitos criados por esse discurso que vieram a, aproximadamente cinqüenta anos após sua invenção, fomentar o surgimento do underground, também genericamente conhecido como contracultura.

Inúmeros autores que se dedicam a escrever sobre o underground, como Theodore Roszak – numa publicação densa na qual vê com muita esperança a oposição juvenil à sociedade tecnocrática – ou como Toninho Buda – um histórico adepto da Sociedade Alternativa que publica textos sobre o tema em revistas e na internet – definem o surgimento do underground como uma “revolução”, uma mudança extraordinária operada na cultura ocidental. Segundo esses autores, os jovens teriam posto a sociedade em crise quando questionaram os valores que conduziam grupos sociais e indivíduos.

Esse questionamento viria, fundamentalmente, do interesse por tudo aquilo que permaneceu à margem e no escuro durante os séculos de constituição da sociedade moderna. Misticismo, naturismo, sexualidade, agressividade, inebriamento, loucura, tudo isso que os modernos desprezavam, e mesmo odiavam, foi posto à tona pelos adolescentes que, desse modo, intentavam formular uma crítica radical e operar um rompimento com a modernidade. Inevitavelmente, ao menos num certo nível, esse movimento levou efetivamente a uma situação crítica que desorientou boa parte das pessoas. Em outro nível, como já sugerimos anteriormente, esse movimento desestabilizou para, sequencialmente, re-estabilizar identidades, valores e condutas, com um novo sentido, bastante propício para o definitivo estabelecimento da sociedade na qual desaparecem os cidadãos para nascer os consumidores.

Parece-nos, sem muita dúvida, que o underground serviu mais aos interesses do mainstream do que se imagina. Se a tendência era a de reformular valores rígidos que impediam o estabelecimento do consumo como ícone de aglutinação sócio-subjetiva, e isso já tinha começado na passagem do século XIX para o XX com a eclosão da cultura jazzística nos EUA, a crise juvenil caiu como luva. Como bem aponta Maria Rita de Assis César, a adolescência passou do status de um momento crítico, de uma “adolescência em perigo”, para o status de uma ameaça à ordem, para uma “adolescência perigosa”. Com um discurso feito especialmente para eles, que os punha no olho de um furacão subjetivo, os adolescentes pareceram entender que poderiam vestir a fantasia que lhes tinha sido imposta. E a vestiram.

Foram, no afã da desobediência, bem comportados durante todo o tempo. Acabaram servindo ao “mestre” capitalístico, que precisava de novos horizontes para a produção de capital. Acabaram por servir aos interesses de relativização dos valores fundamental para a explosão da lógica do consumo, com todos os seus nichos. O underground acabou sendo mais um desses nichos em uma sociedade que se especializou em formular alternativas, todas elas bem capturadas e formatadas para inúmeras e criativas proposições identitárias baseadas no consumo. A mesma sociedade que destruiu a alteridade e, hoje, vive a falar em diversidade.

Isso, neste início de século, nos parece nítido. No entanto, surpreende ler textos contemporâneos que ainda insistem na “força” do underground como oposição ao que chamam de “caretice”, tradicionalismo ou conservadorismo, que, segundo esses textos, seriam hegemônicos e exerceriam uma força repressiva sobre os adeptos do underground. Ora, como bem mostra Terry Eagleton, o que ocorre é o contrário. É o underground que se estabelece como hegemônico e é usado como boneco de ventríloquo das elites. As mesmas que inventaram o “pense global, aja local”, mas sempre agiram globalmente pensando localmente. As mesmas que prestigiam a rebeldia, porque sabem que rebelde é o sujeito que, em essência, sonha apenas ser igual àquele contra quem combate. Como dizia Baudrillard: “É preciso acreditar perdidamente na lei para a transgredir”.

Luiz Geremias (2007)

Underground: um rito de iniciação ao consumo


O underground parece ser o fruto dileto de uma reforma da organização da cultura ocidental que se articulou nos últimos 50 anos. É comum observar que não apenas o senso comum, mas textos de várias ordens – de matérias jornalísticas a abordagens teóricas – tratam os fenômenos sócio-culturais ligados à eclosão do underground como revolucionários, como responsáveis por transformações profundas na sociedade ocidental.

Há, porém, outras percepções do fenômeno. Uma delas se remete a uma legítima revolta dos jovens contra os valores dos mais velhos, causando rebuliço suficiente para a transformação dos costumes tradicionais, mas que, seqüencialmente, haveria sido capturada pela mesma lógica que combatera. Nesse caso, fala-se de uma iniciativa algo saudável que teve seu percurso desviado para o caminho comercial, quedando refém. Uma noção eminentemente rousseauniana: a sociedade corrompe as boas intenções.

Outra possibilidade de compreensão é capitaneada pelo argentino, radicado no México, Néstor García Canclini. Nesta perspectiva, parece inevitável pensar a contracultura underground como inserida no mundo do consumo, porém o ato de consumir pode ser entendido como um ato político. Para Canclini, correlato ao consumo há uma iniciativa de pensar o social, de reelaborar o seu sentido, logo, trata-se de uma nova forma de cidadania. O underground, nesse caso, poderia se constituir como uma proposta privilegiada de redefinição dos papéis sociais.

A proposta, aqui, é sugerir uma nova interpretação da contracultura nascida pouco antes da metade do século passado, que aqui é chamada de underground.

Ocupando um lugar marcado.
A hipótese central que orienta este texto remete à compreensão do underground como um dispositivo de poder, nos moldes propostos por Michel Foucault. Não se crê, aqui, ser possível compreender ter havido qualquer movimento revolucionário no underground. Há, sim, algo que se pode chamar de “reforma”, uma rearticulação do centro da identidade. Os objetivos dessa reforma e os usos subseqüentes estão por ser melhor examinados.

Estudos como o de Thomas Doherty – que aborda a “juvenilização” dos filmes – e de Maria Rita de Assis César – que aborda os discursos sobre a adolescência – sugerem que pode não ter havido uma revolta espontânea da juventude. O mais plausível, nesse caso, é afirmar que houve uma adequação discursiva entre as demandas dos adolescentes – postos numa zona existencial turbulenta desde a criação do conceito de adolescência – e os interesses de pessoas bem mais velhas, que apostavam na necessidade do retorno ao modelo liberal de gestão política e econômica. Isso significa dizer que não houve um movimento revolucionário de autoria de hippies, punks, mods ou de qualquer outra das pós-modernamente chamadas tribos urbanas.

Tudo indica que lhes foi insuflada uma rebeldia – bem definida por Erich Fromm, ainda nos anos 50, como fruto de um profundo ressentimento contra a autoridade que encontra sua pacificação no estabelecimento de uma nova autoridade, absolutamente semelhante à antiga ou na conquista da aceitação do rebelde pelo autoritário.

Logo, talvez não seja exato falar em um movimento jovem “capturado” pelo “sistema”. Tudo faz crer que o movimento jovem foi fomentado pelo sistema, leia-se o sistema do capital, como uma forma de desterritorialização das identidades. Se, por um lado, é uma afirmação delirante dizer que alguém tramou o surgimento das tribos do underground, ou inventou o próprio termo underground, não é absurdo afirmar que esses fenômenos se deram no espaço discursivo da rebeldia, bastante adequado ao establishment.

A perspectiva do consumo como ato político é bastante interessante e sensata. No entanto, prescinde de uma compreensão macropolítica que pode ser encontrada no conceito de Império, de Antonio Negri e Michael Hardt. Se não se tomar em conta essa noção, é possível entender o mundo do consumo como existente por si só e, daí, entendê-lo como um campo profícuo para reflexões e atitudes políticas. No entanto, se for tomada a lógica de ação imperial, é impossível não dirigir a atenção para o modo como essa ação se desenvolve e, principalmente, como é estruturante do universo social.

Um poder estruturante.
Fala-se, então, de um poder macropolítico que se instala, como nunca antes havia ocorrido com tamanha eficiência, nas articulações micropolíticas. Como bem explicou Félix Guattari, tem determinado não apenas o pensamento, mas o desejo. Tudo indica que se trata de um imperativo, aos moldes do Império de Negri e Hardt, o que nos remete a uma macropolítica que se articula micropoliticamente, no plano da cultura. Nesse caso, é viável afirmar que o underground ocupou, de forma exemplar e bem comportada, um espaço já previamente existente na cultura e na sociabilidade ocidental. Em outros termos, foi implantado para suprir uma necessidade política da estratégia imperial.

No contexto desta hipótese, parece viável pensar que há uma inequívoca identidade entre as propostas dos jovens e “jovens” do underground e a lógica estrutural dos pendores da economia política postos em marcha nesse mesmo período.

Há que se considerar, ao seguir essa linha de interpretação, que a necessidade de inserção de uma considerável parcela da população no processo de produção e consumo se tornava imperativa. E que, mais importante ainda, o aparato produtivo industrial precisava de sérias adequações para melhor seduzir tanto essa faixa populacional – os jovens – bem como às demais, que acabariam, no percurso, vinculadas simbolicamente ao referencial da juventude.

Parece difícil negar que houve uma efetiva modificação na “solda” que perpassa as relações socioculturais nas últimas décadas. É costume do senso comum referir-se a essa modificação como uma “liberação dos costumes”, e não falta quem teça loas a isso. No entanto, parece ter acontecido, mais propriamente, uma “neoliberalização”. Em outras palavras, as relações sociais, em todos os níveis, passam a ser referenciadas num molde de consumo, modelo de organização econômica vigente a partir desse período.

Nesse contexto de tentativa de mercantilização de todas as esferas do convívio social, a contracultura parece ter se espraiado como uma articulação simbólica bem estruturada que funcionou predominantemente para alimentar esse movimento sociopolítico na estruturação das relações sociais. Como já bem disse Pierre Bourdieu, o poder simbólico só é estruturante porque é estruturado. No caso do underground, é possível notar que a aplicação desse dispositivo de poder parece muito bem arquitetada. Faz com que gente dócil se faça de indócil e incensa um tolo ideal de rebeldia.

Sofrendo com alegria.
Uma forma interessante de entender o posicionamento do underground na sociedade ocidental é pensá-lo como um “rito de passagem”, uma espécie de “rito de iniciação” ao fascinante mundo do consumo: consomem-se drogas e consome-se cultura, sonhos, música e corpos. Principalmente, o underground ensina que pessoas são também consumíveis sem culpas. É o que é possível observar ao se estar próximo de uma dessas tribos, ou “galeras”.

O discurso da rebeldia underground se articula exatamente contra a sociedade “normal”, mas parece intrinsecamente envolvido com ela. Não há qualquer tom revolucionário a ser notado. Confirmando a semântica do discurso rebelde referido por Fromm, um articulista da, há muito extinta, revista Fairplay, Eurico Lima Figueiredo, escrevia, em março de 1968, no meio do rebuliço hippie, que o hippie transferiria para o próximo a responsabilidade de sua vida. Isso, tanto no sentido de que alguém teria que zelar pelo seu sustento quanto em relação à postura alienada perante as grandes questões da realidade.

Deixando intocada a realidade macropolítica, na verdade comungando com ela, o underground se posiciona como o ritual de iniciação que a sociedade burguesa jamais teve. Nele, os jovens da classe média urbana aprendem que deverão se converter ao rebanho que é abatido lentamente no cotidiano da contemporaneidade. São instruídos sobre como deverão proceder para se sentir felizes, apesar de toda a desgraça de sua condição, a condição pequeno-burguesa no mundo dito pós-industrial, no qual a carne da pequena-burguesia substitui a do proletariado. Através do álcool, de outras drogas e do consumo cultural fechado em comunidades estanques, aprendem a reagir com alegria às sangrias do sistema. A dor passa a ser até mesmo divertida. A isso, Jean Baudrillard chama de fun system, e não é absurdo classificar esse risonho sistema como o modelo ideal para uma estratégia de consumo.
Luiz Geremias (2007)

12 de março de 2009

Macavenco é...



QUE OU AQUELE QUE DESTOA DA MAIORIA; ESQUISITO, EXCÊNTRICO (HOUAISS)