15 de abril de 2009

Pelo amor do Chefe

O Chefe não erra, não comete enganos, não titubeia nem flerta, muito menos assedia. O Chefe não parece ser, o Chefe é. Se Ele diz, é verdade, não há sofisma. Se Ele quer, será. Se o Chefe diz, cumpra-se. E se Ele, ou Ela, dá em cima de você, a culpa é sua. Ou, se não culpa, foi você que seduziu, seu, ou sua, safado, ou safada.

Há tolos que classificam o Chefe como onipotente, onisciente, criador do céu e da terra etc. etc. Besteira. O Chefe está para além de tudo isso. Ele é Chefe, não se esqueça disso. Sua família e sua pele lhe serão gratas pela lembrança. Deus pode ter te dado a vida, mas é o Chefe que toma conta dela até que o diabo a carregue.

Aliás, a existência do Chefe é a prova terrena mais cabal de que Deus realmente existe. Graças ao Chefe você pode dormir tranquilo e alimentar a esperança de, um dia, cair nas graças do Chefe Celestial. Isso certamente nunca vai acontecer, assim como não há nenhuma simpatia do Chefe por você. Sonhe, mas não se iluda.

Outro mito a ser derrubado é o de que todos devem almejar ser Chefes. Chefe só há um. Todo e qualquer subalterno que se arvore a reivindicar o lugar sagrado do Chefe será fulminado por justa causa. A César o que é de César, ao Chefe o que é do Chefe. Você está querendo o quê? Volta pra tua mesa e trabalha, mero mortal.

Ter um Chefe é providencial. Apenas os seres unicelulares não o têm, sendo que são seus próprios Chefes e, por isso, jamais evoluíram.

O Chefe tem predicados irrefutáveis. Entre eles, a santa capacidade de nos livrar de alguns problemas e infortúnios. Se há um Chefe, não é necessário decidir nada, pois Ele o fará por você. E estará sempre certo, lembre-se. Se alguma coisa der errado, foi você que não soube cumprir as ordens direito.

Saiba se prevenir dos falsos Chefes. É fácil reconhecer imitações. O Chefe que trata muito bem os subalternos, por exemplo. Você logo perceberá a falsificação grosseira. O Chefe sabe que é temido e que precisa ser temido, por isso só conversa com você com o chicote. Não tente se aproximar nem morder sua mão. É ela que te alimenta, você sabe.

Chefe é amor, mas costuma atrair muito ódio. Se você odeia o seu Chefe, se confesse. Para o Chefe, é claro. Não faça isso sem primeiro espalhar vidro moído pelo chão e ajoelhar em cima. Sorte se te perdoar. Maior sorte ainda se te mantiver no emprego.

Você já deve ter entendido que não se discute com o Chefe. Elogiá-lo é obrigação, mas sem exageros. Lembre-se que entre o sublime e o ridículo há apenas um passo. Apologias exorbitantes e declarações melosas podem ser interpretadas como chacota. Se isso acontecer, seu único proveito vai ser saber o que sentiram os habitantes de Pompéia quando o Vesúvio cuspiu fogo.

Falar bem do Chefe é uma arte, cultivada desde tempos imemoriais. Deve-se escolher os predicados e os pronomes com extrema sensibilidade. É certo que não podem ultrapassar certos limites. Evite chamá-lo de “querido(a)”, “fofinho(a)” ou “xuxu”. Gostoso(a) é crime inafiançável. “Amoreco”, nem pensar. Guarde essas breguices para o caso de ter a rara sorte de frequentar sua alcova. Se você conseguir chegar tão perto do Chefe, quase tudo se torna possível. QUASE tudo, ok? Não esqueça disso e não confunda as coisas.

Se você ainda não entendeu, se liga. Chefe pode ser homem, mas também pode ser mulher. Isso, no crachá. Na prática, na real, para ser Chefe é imprescindível ser muito macho.

O Chefe tem a sua câmara sagrada, a sua sala, que deverá estar sempre de porta fechada, limpa, arrumada e livre da tua presença enfadonha. Não entre na sala do Chefe sem ser mandado ou convidado. Se for mandado, o Chefe provavelmente o fará para passar alguma tarefa. Se convidado, cuidado. Boa parte dos que assim chegaram à sala do Chefe, de lá saíram diretamente para a rua. O convite costuma trazer maus presságios, principalmente se enunciado por outro subalterno. Prefira sempre ouvir uma clara e expressa ordem de comparecimento, se possível com o seu nome berrado com fúria. Aí, pode ir tranquilo.

Se você estiver em um recinto no qual o Chefe entre, perfile-se. Se estiver sentado, levante-se imediatamente. Nada de curvar-se, ficar de joelhos ou fazer salamaleques. Lembre-se que não deve haver paroxismos elegíacos ou louvores excessivos. Descarte expressamente pegá-lo no colo ou lhe tascar aquele beijo inesperado cheio de afeto e baba.

Importante: Nunca, ouça bem, NUNCA!, fale ao mesmo tempo que o Chefe. Se isso acontecer, mesmo que num átimo, peça desculpas, peça licença e vá até o banheiro. Utilize a gravata para um suicídio silencioso. Alças de sutiãs podem também ser usadas, se for o caso. Afogar-se na privada é grotesco e enfurece ainda mais o Chefe.

Cultive o seu Chefe. Ele é magnânimo, mas para desprender todo seu fulgor necessita de cuidados especiais. É, no fim de tudo, uma frágil plantinha que necessita de todo o carinho. Precisa da semente da estima, da irrigação da obediência, da luz do elogio e do ar puro do sorriso sincero de seus comandados. Agindo assim, você certamente terá as flores da boa convivência e, quem sabe, colherá os frutos do reconhecimento do seu valor. E olha que você não tem nenhum.

Para completar, lembre-se: o Chefe de bom humor é um bem precioso. Porém, é impossível evitar dias de tormenta. Quando ocorrer, não use guardachuva. A mijada do Chefe é fértil.

PS: Ah, ia esquecendo. Tem Chefe com diploma, mas também tem chefe semianalfabeto. Ao primeiro, você chama de doutor, ao segundo, de excelência.
Luiz Geremias

Os subalternos

Definição
É um espécime que se define pela pertença a um Chefe. Todo chefe tem pelo menos um subalterno. Via de regra, são vários, muitos. Alguns chefes chegam a colecionar subalternos em grande quantidade.

O chefe de apenas um subalterno é chamado chefe trainee e geralmente possui o subalterno apenas para descontar as broncas que leva do seu chefe, pois o chefe trainee tem sempre outro chefe. Em outros termos, esse tipo de chefe não passa de um estagiário de chefia. De acordo com o estado físico apresentado pelo seu subalterno, pode ascender a chefe sênior. Se o subalterno ficar aleijado, esquizofrênico ou se vier a falecer, o trainee pode, inclusive, se candidatar a presidente da empresa.

Sentido existencial
Por que o chefe tem subalternos? A resposta é simples: para humilhá-los. O chefe somente se realiza e eleva a sua autoestima quando dá aquela esculhambação nos subalternos. Estes, embora pareça insensato, sentem-se bastante felizes e não reclamam se houver torturas ou descontos em folha. Tranquilos, sabem que a ira do chefe é um bom, um excelente sinal. Só o chefe irado, possesso, o chefe que cospe marimbondos, ama seus subordinados.

Patologias
O subalterno sente o coração pulsar forte quando vê o chefe. Já na sua ausência sente prostração e falta de disposição para qualquer atividade produtiva. Em casos graves, a mão do subalterno, que sempre se amolda perfeitamente ao saco do chefe (nunca esqueça que mesmo os chefes do sexo feminino têm saco, mas não para tolerar suas gracinhas), pode, sem ter o que pegar, se voltar contra o subalterno.

A ausência prolongada do chefe pode levar a quadros clínicos como aquele no qual, entre delírios e alucinações, o subalterno vê o chefe em todos os lugares e, suprema heresia, chama de chefe quem não é chefe. A medicina tem registros de patologias raras, nas quais o subalterno crê ser, ele mesmo, o próprio chefe. São situações de prognóstico nefasto e ganham o nome de Cri du Chef, pois o pobre mortal trata a todos em sua volta com gritos iguais aos que ouve do chefe. Quem acha que já viu de tudo na vida deve ir a um sanatório e procurar por um deles. Mas, vá prevenido. É uma experiência chocante.

Raízes genéticas
De todo modo, é importante para todo subalterno saber que é um privilegiado. Veio a este mundo com a missão de ter um chefe, o que garante uma tranquilíssima vida medíocre e sem culpas. Pesquisas recentes demonstram que é possível isolar o DNA do subalterno, sempre uma cópia imperfeita do código genético do chefe.

Identificação
Comportamentalmente, o subalterno é identificável a olho nu desde a sala de parto. É aquele recém-nascido que bate continência para o médico e despreza a pobre mãe, que será, por toda a vida, tratada apenas como um recipiente no qual sua essência subalterna habitou por nove meses. Mas há os que, nas brincadeiras infantis, demonstram inaudita crueldade e surram frequentemente os mais fracos. Nestes casos, cabe investigar se não houve troca de bebês na maternidade. Você pode estar diante de um chefe nato e hereditário.

Tipos de subalternos
Há os que acreditam haver apenas uma modalidade de subalternos. Ledo engano, pois há várias, das quais destacamos três básicas. Há os subalternos dóceis, os que aceitam ipsis litteris as determinações do chefe. Entre esses, há subdivisões sutis entre os que ainda as elogiam e os que pensam em fazer isso, mas caem em prantos levados pela emoção de receber uma ordem e não conseguem tecer todas as loas que gostariam.

Há os subalternos ambivalentes, que são aqueles que acatam prontamente as decisões do chefe, mas resmungam longe da sua vista. Não o fazem por mal. O que os motiva podem ser más companhias, degenerações de personalidade ou problemas de encosto.

Os recalcitrantes, o terceiro tipo, são uma espécie em extinção. Caçados pelos subalternos normais, os dóceis, são denunciados, julgados e sumariamente executados por justa causa. São, ou eram, aqueles que aceitam, ou aceitavam, as ordens e fazem, faziam, as coisas à sua moda. Sumirão definitivamente do mapa, da mesma forma como aconteceu com os subalternos rebeldes, os que discutiam as ordens do chefe. Estes podem ser encontrados, empalhados, em museus, na seção paleolítica, ao lado dos dinossauros e tigres de dentes de sabre. Dos subalternos violentos, os que se recusavam a cumprir as ordens, só restam ossadas.

Subalternidade cultual
De acordo com os rígidos preceitos religiosos que adotam, os subalternos amam o chefe acima de todas as coisas. Engana-se aquele que acha que esses seres amam o chefe como a si próprios. Amam apenas o chefe e, se este permitir, podem ter até certa simpatia em relação a si próprios. Os mandamentos do subalterno incluem também não cobiçar as secretárias do chefe, nunca pronunciar o nome do chefe se não for para elogiá-lo, não furtar a paciência do chefe e jamais matar tempo jogando paciência ou pondo açúcar no café.

A já citada "hora do esporro" é solene, um momento sacro, comparável a uma canonização. O subalterno sente-se purificado ao ser banhado pela saliva benta do chefe.

Terminologias
Os subalternos têm outros nomes que os identificam. Podem ser chamados de ralé, plebe, rebotalho, bagrinhos, barnabés, rataria, etc. etc.. Em público, com exceção dos sacros momentos da mijada, o chefe nunca os chama assim. Frequentemente os classifica como “colaboradores”. Já na intimidade do lar ou em reuniões com outros chefes, os subalternos são usualmente chamados de “aqueles merdas” ou “os filhos-da-puta”.

O subalterno e a política
Há subalternos que fundam sindicatos. Geralmente, as greves são suspensas no primeiro soco na mesa que o chefe dá e as negociações terminam quando acaba a estabilidade no emprego. São piores que chatos, por isso não é raro acabarem também grudados no saco do chefe. Nesse caso, não há negociações ou greves e tudo segue como deve ser.

Houve, na história humana, aqueles que intentaram sublevar os subalternos. Um deles cunhou a célebre exortação: “subalternos de todo o mundo, uni-vos”. Eles se uniram, mas quando descobriram que iam ter que ser seus próprios chefes, escolheram novos chefes. Estes, mais chefes que os antigos chefes, também se uniram para esfolar os subordinados. E, assim, todos vivem felizes para sempre.
Luiz Geremias

12 de abril de 2009

Acerca das ovelhas

Um fenômeno da contemporaneidade, bem detectado por Charles Bukowski, é a enorme e definitiva presença, em todos os cantos, de perdedores. Os chamados losers são facilmente identificados não somente por serem ininterruptamente vilipendiados, mas por formar uma massa de idiotas brutalizados que se acham, no entanto, infinitamente espertos e que gostam de ser chamados frequentemente de cidadãos, embora este termo, se tomado ao pé da letra, não tenha muito a ver com isso.

O escritor alemão exemplifica sua percepção relatando sua experiência nas freeways e nos hipódromos. Ele vê sujeitos que apostam nas corridas de cavalo não exatamente para ganhar, mas para alimentar uma tola ilusão de um dia ganhar, mas não ganhar um pouco: ganhar bastante, muito, milhões ou bilhões de dólares ou reais. “Nenhum deles escolheu um vencedor. (...) Digamos que cada um deles escolhesse um número como 1, 2 ou 3 e ficasse com ele, automaticamente escolheria um vencedor. Mas, pulando de número em número, de algum forma conseguiram, usando todo seu poder cerebral e know-how, continuar perdendo”. Mas, pergunta-se Bukowski, por que, mesmo agindo tão tolamente e perdendo sempre, continuam indo às corridas? Para alimentar o sonho de ganhar bastante, ele sugere.

É a lógica da infinita maioria de apostadores dos jogos de números, como a Sena, a Mega-Sena, a Quina e penduricalhos. Eles imaginam ser possível ganhar um ou dez milhões, enquanto as chances conspiram contra numa proporção de algumas dezenas ou centenas de bilhões. Os talões de apostas informam sobre essa trágica desvantagem, mas eles continuam tentando. É possível que o que lhes faça agir assim seja a crença de que cada um dos perdedores alimenta: a de ser especial. É contraditório, mas cada pessoa-massa crê apaixonadamente na sua singularidade diante da sorte, embora a realidade lhe desminta isso a todo momento.

As modernas técnicas de comunicação parecem se moldar perfeitamente a essa situação lamentável e tudo indica que não apenas se amoldam a ela, como ajudam decisivamente a lhe dar forma. Recentemente, a Folha de São Paulo publicou, em um de seus cadernos, uma esclarecedora matéria sobre o Facebook, um sítio de relacionamentos da internet. Ao completar seu quinto aniversário, o Facebook já arregimenta 200 milhões de usuários, informa a Folha. Trata-se de um espaço que serve de veículo para expressões do ativismo político, bem como das mais diversas manifestações individuais e coletivas. Os brasileiros conhecem bem um sítio semelhante, o Orkut, que tem as mesmas características supostamente democráticas.

Não há nada democrático nisso, ou se há se pode entender apenas como fruto de uma concepção de democracia como veículo de manipulação de massa. “Mas se o Facebook está disposto a dar voz aos usuários, não necessariamente quer ouvi-los”, diz a matéria. Quer dizer: falar você pode, mas quem te ouvirá? Esse é o espírito comum que une os losers.

Esses meios de comunicações da internet servem mesmo é para dar lucro, não apenas aos seus administradores, mas às diversas empresas que o usam como terreno de pesquisas de nichos de mercado e vendas diversas. “O Facebook recentemente introduziu ferramentas publicitárias que permitem às empresas focar em usuários com base no idioma usado e na sua localização”, diz a Folha. Assim, podem explorar melhor as fantasias de perdedores latinos que moram em Los Angeles ou otários francófonos habitantes de Montreal. Todos eles falam, se expõem, quem sabe na esperança de dizer algo, mas o que fazem é bancar as ovelhas que adoram informar aos lobos onde gostam de pastar.


Luiz

11 de abril de 2009

Tudo por dinheiro

Enquanto prevalecer a compreensão de que o ganho financeiro é o principal dispositivo de orientação de um veículo de comunicação, assistiremos ao esvaziamento da credibilidade não apenas das empresas jornalísticas, como das instituições que fornecem a base da sociedade democrática, tais como a Justiça e a Política. Essa noção, inspirada pelos textos do teórico português João Pissarra Esteves, é muito adequada para pensar o papel dos meios de comunicação na (de)formação ética da sociedade.

Pissarra Esteves entende que a Opinião Pública contemporânea é a "opinião" de indivíduos isolados não fisicamente, mas espiritualmente. Não há, assim, identidade naquilo que chama "massa". Há, isso sim, a sujeição a dispositivos midiáticos. Esses dispositivos são controlados por empresas. Logo, a comunicação, o uso do arranjo de língua e linguagem na formulação da subjetividade, está indelevelmente influenciada pela chamada "filosofia" empresarial.

Esse uso não tem se mostrado correto. A práxis midiática corre no sentido da perlocução, inclusive o jornalismo. A estratégia informacional é exercer um efeito emocionalmente envolvente e pilhar o sujeito do senso de uma formulação subjetiva para instaurar uma simulação identitária em que não há nem individualidade nem mesmo sequer subjetividade. Em outros termos, controlando seu comportamento e, indo além, sua definição subjetiva.

Fatos? Para quê?
O caso Isabella Nardoni é um bom exemplo de como isso funciona. A mídia aposta no sensacionalismo, incita reações com informações duvidosas e, pior, faz da Justiça o cenário de um espetáculo cinematográfico dantesco. Audiência se ganha desse jeito. Com ela, vêm os anunciantes, cresce o faturamento, essas coisas.

O fato não importa. Notícias são produzidas não sobre fatos, mas sobre afirmações de advogados, juras de justiça de promotores, conclusões imprecisas de policiais, entrevistas de suspeitos etc. Tudo se transforma numa telenovela. Não há investigação e não há qualquer proposta aparente além do aumento do faturamento pela via da comoção folhetinesca. Não se formam pessoas nem cidadãos. Pelo contrário. Para a mídia, não existem indivíduos nem identidades, apenas uma massa quantificável.

Sem ética, não há sociedade
Isso deve ser veementemente questionado. O compromisso de um veículo de comunicação não pode se resumir a amealhar audiência ou a elevar o lucro. A natureza do serviço de transmissão de informações ao público tem que ir além disso e assumir uma postura ética. Pelo menos se levarmos em conta seu caráter de serviço público. Acima do interesse localizado está, certamente, o coletivo.

Adela Cortina, professora da Universidade de Valência e diretora da Fundação para a Ética nos Negócios, diz que a gestão ética das empresas se converteu em algo fundamental para fazer com que um projeto social perdure. Adela entende que as empresas têm buscado apenas resultados de curto prazo e isso é algo que deve mudar se queremos que as pessoas se comportem de modo ético.


Para uma empresa de comunicação, essas palavras têm um valor inestimável. Afinal, são elas as principais articuladoras de preceitos que formam ou deformam a subjetividade do cidadão. Agindo prioritariamente com a inspiração do lucro, dão um péssimo exemplo. Incitam a uma forma de vida sem civilidade, à barbárie da lei do "tudo por dinheiro". A curto prazo, parece tentadora essa esfaimada obsessão por audiência e ganho financeiro. A longo prazo, os resultados poderão ser terríveis: sem ética, não há sociedade possível.


Luiz Geremias – 21/5/2008

O supérfluo do consumo

Uma sociedade de consumo não é aquela na qual as pessoas simplesmente compram produtos. Isso aconteceu e acontecerá em qualquer grupo social, sempre. Esse conceito é adequado para uma forma de vida que se caracteriza predominantemente pela compra de produtos supérfluos. Uma sociedade em que se compram carros para transporte, não é uma sociedade consumista. Outra, na qual os carros são adquiridos para simbolizar algo, seja o status ou a identidade, essa, sim, pode ser chamada de sociedade de consumo, ou ainda uma sociedade consumista. Não é, assim, o fato de consumir, mas o consumo de bens simbólicos, logo, numa lógica utilitarista, de supérfluos.

Em uma sociedade de consumo é preciso haver uma cultura de consumo. É preciso, mais que isso, que se definam personalidades que, através do consumo, se estruturem e definam. Assim, o que se pode chamar de supérfluo – em um carro, a marca, a aerodinâmica, a potência do motor e, principalmente, a identidade que a publicidade lhe confere – é o que define a personalidade consumista. O que esta busca jamais está relacionado à utilidade do produto que consome, mas ao lugar simbólico que ocupa.

O símbolo é uma abstração com uma articulação inequivocamente arbitrária. Não há qualquer relação entre o símbolo e o significado que lhe é atribuído. Se houver, passaria a se chamar ícone. Nem mesmo a tênue identidade que define um índice pode ser encontrada no símbolo. Isso, é claro, se tomarmos de forma impecável a semântica de cada termo. Esse terreno, o do simbólico, parece bastante propício para a ação ideológica, ou, se poderia dizer, vive essencialmente submetido a ela.

O uso do símbolo é fundamental para o consumo do supérfluo. O vínculo entre o símbolo e seu significado tem um singular caráter arbitrário. O completo vazio existente entre o que é simbolizado e o símbolo está preenchido por um complexo de referentes, “representações”, ou “objetos”, diria a psicanalista Melanie Klein. O interessante é notar que esses referentes são ali postos de forma articulada, muito embora a articulação entre eles não seja mais do que um artifício. E é nesse terreno eminentemente artificial, aquele que Jean Baudrillard localiza no simulacro, que encontramos a matéria prima do edifício do consumo.

Simular, nesse caso, não é exatamente fazer parecer real o que não é real. É substituir o real, que, assim, acaba tragado pela simulação. A esse fenômeno, Baudrillard enuncia se tratar de um hiper-real: uma realidade mais real do que o próprio real, simplesmente porque é articulada de uma forma em que não há lacunas, hiatos ou dúvidas. Dir-se-ia o real desvendado, como se isso fosse possível. Uma ilusão estonteante e absolutamente nefasta.

O sujeito simbólico da sociedade de consumo torna-se, desse modo, um impotente político. Tem não apenas seu pensamento e seu comportamento controlado de fora, por outrem, mas, fundamentalmente, toda a sua subjetividade. Torna-se, no dizer de Slavoj Zizek, algo como um robotic pupet, um fantoche maquinicamente animado. Movimenta-se entre símbolos arbitrariamente postos e os identifica como seus, entende-se como autor dessa pantomima, quando evidentemente não é.

A sociedade de consumo, como dito, é a sociedade do supérfluo. Não exatamente no que diz respeito ao consumo, é preciso dizer. Todo o élan criativo, toda e qualquer manifestação de singularidade, tudo aquilo que faz com que a vida possa ser chamada de vida no seu pleno significado é que é realmente supérfluo. Em outras palavras, o que é extravagantemente desnecessário é tomado como fundamental, enquanto o que define a vida, o que oferece a plenitude da posse e do compartilhamento da existência, é completa e resolutamente inútil.

Ao tornar o excedente a principal meta, a sociedade de consumo esconde a miséria do que lhe falta. E esbalda-se em sua própria miserabilidade.

Luiz Geremias – 26/5/2008

E, no entanto, ele passa...

Uma das características da vida pós-moderna, dizem, é o abandono do conceito de identidade. Michel Maffesoli chega a dizer que não há mais como falar nisso, pois viveríamos o tempo da identificação. Essa seria uma resposta, para alguns, revolucionária, de grande importância na transformação dos costumes ocidentais, ou, para outros, evolutiva, uma nova mentalidade para um novo tempo, à rigidez da identidade moderna. O conceito de identidade, de “eu”, possuía uma pesada solidez, uma unicidade indisfarçável. Já o “eu” pós-moderno é jovem, dinâmico e multifacetado. A identidade é substituída pelas máscaras que variam conforme a identificação.

Até certo ponto da história do ocidente, as características da identificação pós-moderna eram atribuídas ao adolescente. Já no século XIX, essa fase da vida começou a ganhar atenção do discurso médico e a ser definido como um momento de instabilidade e incertezas, um vácuo no qual se deixava de ser criança e se entronizava no mundo adulto, isto é, assumia-se uma identidade. Esta permaneceria por toda a vida, ou quase.

Observando as características da cultura e da sociabilidade na sociedade ocidental contemporânea, é possível dizer, assim, que, aparentemente, todo o ocidente se transformou num continente de adolescentes, ou, melhor dizendo, de jovens. Como bem entende Beatriz Sarlo: A infância quase desapareceu, encurralada por uma adolescência precocíssima. A primeira juventude se prolonga até depois dos 30 anos. Um terço da vida se desenvolve sob o rótulo de juventude, tão convencional quanto quaisquer outros rótulos.

Grandes quantidades de “jovens” de todas as idades se reúnem em grandes shows, abdicam de seu “eu” – no sentido clássico, indivisível – e se fragmentam como partes da multidão em veneração a seus ídolos. Vivenciam um grande corpo coletivo e é este quem lhes diz quem são. Por outro lado, constituem-se como nichos de consumo na medida em que grupos se destacam do todo para formalizar pequenas experiências estéticas, como vestir-se de certo modo – via de regra, anárquico, ou supostamente anárquico, já que é pastiche –, escutar certo tipo de música, dançar de certa maneira etc. Irmanados, sempre, pela égide da rebeldia.

Acompanhando Sarlo, é possível dizer, nessa conjuntura, que alguém sugere ao corpo coletivo quem ele é, isto é, lhe fornece os parâmetros subjetivos segundo os quais se dá a identificação. Segundo ela, consumidores efetivos ou consumidores imaginários, os jovens encontram no mercado de mercadorias e bens simbólicos um depósito de objetos e discursos fast preparados especialmente. A autora lembra que a obsolescência acelerada, fruto da velocidade de circulação, determina que tudo deve ser novo, o que é fundamental para o capitalismo. Inegável é, como Sarlo deixa claro, que nunca as necessidades do mercado estiveram afinadas tão precisamente ao imaginário de seus consumidores.

A identidade parece ter se fragmentado para encontrar definição na vivência caótica da transgressão rebelde, que, por sua vez, funciona como um fractal . E nesse arranjo fractal, em meio ao caos, surge a ordem. E nesse fractal a forma que se reproduz é a da adolescência eterna, sempre instável, em perene mutação. É preciso, então, observar o fundo que conforma e define essa figura.

Diz Sarlo, com sagacidade, que se é verdade que as identidades quebraram, entre seus cacos não ficou o vazio. Ficou o mercado. Por isso, é possível dizer que o pop se constitui como um rito de iniciação ao consumo, uma manifestação cultural dos que mudam todo o tempo para permanecer no mesmo lugar. Mais que isso. Parece se constituir como a frágil garantia de que o tempo não passará.

E, no entanto, ele passa.