14 de março de 2009

A rebeldia consentida do underground



Um tema que merece atenção especial neste início de século é o da cultura. Houve, notadamente nos últimos 50 anos, uma exacerbação de investimentos no plano da cultura, com a midiatização eletrônica de informações e entretenimento. Foi nesse período que surgiu um elemento fundamental para a efetivação dessa “virada” que transformou o sentido da cultura: a contracultura, ou o underground. É sobre esse elemento que vamos falar.

A cultura da modernidade, eminentemente letrada, não podia dar sustentação a um sistema baseado no consumo. A razão tem uma natureza instrumental que não pode facilmente conter elementos subjetivos hegemonicamente postos em vantagem com relação aos determinantes objetivos. Racionalmente, alguém compra algo com um objetivo utilitário e não com interesses de localização subjetiva no imaginário sociocultural. Essa lógica é inadequada para uma sociedade fundada no consumo e precisava sofrer algumas alterações. O surgimento do underground foi bastante adequado para operacionalizar essas alterações.

Se antes uma compra era realizada por motivos racionais, após essa “virada cultural” passou a ser determinada por vetores subjetivos e a racionalidade entra em segundo plano como “racionalização”, isto é, como uma “desculpa” que o consumidor dá a si próprio ou a outros para a compra. Nessa compra, são agregados valores subjetivos que posicionam o indivíduo perante si e a sociedade, ofertam um lugar identificatório.

O underground é uma manifestação cultural que se formulou estimulada por demandas de adolescentes, essencialmente como oferta a essa demanda. A adolescência não existia antes do final do século XIX e esse status de adolescente foi criado nos tempos da estratégia higienista como um momento crítico da vida do ser humano. Sem tomar em conta o contexto histórico do surgimento dessa designação, o saber ocidental marcou a adolescência como um estágio “natural” do desenvolvimento humano, numa atitude eminentemente marcada pela mentalidade positivista. Foram os sujeitos criados por esse discurso que vieram a, aproximadamente cinqüenta anos após sua invenção, fomentar o surgimento do underground, também genericamente conhecido como contracultura.

Inúmeros autores que se dedicam a escrever sobre o underground, como Theodore Roszak – numa publicação densa na qual vê com muita esperança a oposição juvenil à sociedade tecnocrática – ou como Toninho Buda – um histórico adepto da Sociedade Alternativa que publica textos sobre o tema em revistas e na internet – definem o surgimento do underground como uma “revolução”, uma mudança extraordinária operada na cultura ocidental. Segundo esses autores, os jovens teriam posto a sociedade em crise quando questionaram os valores que conduziam grupos sociais e indivíduos.

Esse questionamento viria, fundamentalmente, do interesse por tudo aquilo que permaneceu à margem e no escuro durante os séculos de constituição da sociedade moderna. Misticismo, naturismo, sexualidade, agressividade, inebriamento, loucura, tudo isso que os modernos desprezavam, e mesmo odiavam, foi posto à tona pelos adolescentes que, desse modo, intentavam formular uma crítica radical e operar um rompimento com a modernidade. Inevitavelmente, ao menos num certo nível, esse movimento levou efetivamente a uma situação crítica que desorientou boa parte das pessoas. Em outro nível, como já sugerimos anteriormente, esse movimento desestabilizou para, sequencialmente, re-estabilizar identidades, valores e condutas, com um novo sentido, bastante propício para o definitivo estabelecimento da sociedade na qual desaparecem os cidadãos para nascer os consumidores.

Parece-nos, sem muita dúvida, que o underground serviu mais aos interesses do mainstream do que se imagina. Se a tendência era a de reformular valores rígidos que impediam o estabelecimento do consumo como ícone de aglutinação sócio-subjetiva, e isso já tinha começado na passagem do século XIX para o XX com a eclosão da cultura jazzística nos EUA, a crise juvenil caiu como luva. Como bem aponta Maria Rita de Assis César, a adolescência passou do status de um momento crítico, de uma “adolescência em perigo”, para o status de uma ameaça à ordem, para uma “adolescência perigosa”. Com um discurso feito especialmente para eles, que os punha no olho de um furacão subjetivo, os adolescentes pareceram entender que poderiam vestir a fantasia que lhes tinha sido imposta. E a vestiram.

Foram, no afã da desobediência, bem comportados durante todo o tempo. Acabaram servindo ao “mestre” capitalístico, que precisava de novos horizontes para a produção de capital. Acabaram por servir aos interesses de relativização dos valores fundamental para a explosão da lógica do consumo, com todos os seus nichos. O underground acabou sendo mais um desses nichos em uma sociedade que se especializou em formular alternativas, todas elas bem capturadas e formatadas para inúmeras e criativas proposições identitárias baseadas no consumo. A mesma sociedade que destruiu a alteridade e, hoje, vive a falar em diversidade.

Isso, neste início de século, nos parece nítido. No entanto, surpreende ler textos contemporâneos que ainda insistem na “força” do underground como oposição ao que chamam de “caretice”, tradicionalismo ou conservadorismo, que, segundo esses textos, seriam hegemônicos e exerceriam uma força repressiva sobre os adeptos do underground. Ora, como bem mostra Terry Eagleton, o que ocorre é o contrário. É o underground que se estabelece como hegemônico e é usado como boneco de ventríloquo das elites. As mesmas que inventaram o “pense global, aja local”, mas sempre agiram globalmente pensando localmente. As mesmas que prestigiam a rebeldia, porque sabem que rebelde é o sujeito que, em essência, sonha apenas ser igual àquele contra quem combate. Como dizia Baudrillard: “É preciso acreditar perdidamente na lei para a transgredir”.

Luiz Geremias (2007)

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