17 de março de 2009

A tropa da elite

Em 2006, no ano passado, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o policial militar André Batista e o ex-PM Rodrigo Pimentel, agora pós-graduado em Sociologia, escreveram um livro no qual contam as aventuras e desventuras dos policiais que “arriscam a vida no cumprimento de seu dever constitucional, com dignidade e coragem”. No entanto, parecem reconhecer os “casos sucessivos de corrupção e brutalidade [que] feriram de morte, no Rio, a confiança da sociedade em suas polícias”. O livro é cruel, como o primeiro texto faz questão de definir. Chama-se “A Elite da Tropa”.

No prefácio, há um conceito interessante que, por si só, pode justificar a edição do livro: para que um objetivo como o da reconciliação entre sociedade e polícia seja possível, “é preciso olhar nos olhos a verdade e reconhecê-la, sem meias palavras e subterfúgios, sem hipocrisia e retórica política”. Muito bom. A mensagem é clara: ao invés de tentar provocar o ódio, a denúncia das atrocidades eméritas do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE), se busca o luto, a conscientização da perda, da desgraça que ronda os participantes da “guerra muito particular” entre policiais e pobres no Rio.

O que os autores pretenderam, então, é fazer o que Fausto Wolff propõe na epígrafe do livro “O Campo de Batalha sou Eu”: É arrasador rasgar a realidade e suportar a verdade que ela encobre. A surpresa pode ser fatal, entretanto é preciso tentar; decidir entre o exercício da morte ou o aprendizado da vida. Belas palavras, fulgurante proposta. Não é possível saber se os autores conseguiram o que propuseram, ainda. No entanto, é elogiável a intenção.

Tomando essa intenção no seu sentido mais radical, propondo que, se é para suportar a cruel realidade, é preciso dizer outras coisas ainda sobre a polícia, escrevo este texto. Já se falou, como exposto, da Elite da Tropa e, num filme lançado recentemente, se falou também numa Tropa de Elite – referida ao mesmo BOPE. Não se falou, ainda, em uma Tropa da Elite. Os enfoques são diversos, vértices diferentes de observar o mesmo fato ou fenômeno.

Tropas insanas

A “tropa de elite” remete a um destacamento da polícia militar que se destaca pelo nível de especialização em suas ações. Especialização, de acordo com os relatos do livro, em, principalmente, agressividade e crueldade. Mas, não somente isso. São especialistas em guerra. Guerra contra pobres.

De acordo com o filme, são policiais honestos. Honestidade não inclui, nesse caso, o matar e torturar. Tudo em nome da lei. O problema pode estar na ilusão de que a lei atende à sociedade. Problema maior é estar a serviço daqueles que lucram com a lei.

A “elite da tropa” remete a algo semelhante: os que se destacam na elite por tornar pública a vida e os sentimentos da “tropa de elite”. Nessa perspectiva se valida a proposta do livro. Não se valida, porém, acreditar que a guerra é contra o comerciante de drogas no morro. Será que alguém ainda acredita que os US$ 500 bilhões/ano que são movimentados no mundo pelo movimento de venda de drogas vão para as mãos dos pobres?

A posição da polícia no Rio de Janeiro é das mais delicadas. É muito difícil justificar suas ações. Menos complicado é entender o porquê da sua existência e o sentido de suas práticas. Tanto o filme, quanto o livro, nos dão versões localizadas, internas à “tropa”. De forma transversa, podem nos dar indícios, também, de sentidos singulares de subjetividades. Os soldados de elite parecem ter um “amor pelo Brasil” e uma convicção de que são predestinados a combater o crime acima da média. Há uma crença obsessiva de que se a realidade puder ser controlada pela polícia, o crime cessará. Uma idealização algo infantil do poder organizativo e democrático da lei e, principalmente, de seu sentido sócio-político. Como indivíduos, o pessoal do BOPE seria idealista: o crime é um câncer e eles a cura. Só que ninguém lhes explicou que extirpar o sintoma não acaba com a doença. É muita insanidade acreditar nisso.

Uma elite a serviço da elite?

Por esses singelos motivos, o “homem da roupa preta” (o BOPE se veste assim) que se julga “elite”, não é mais do que bucha de canhão da verdadeira elite. É, levando em conta o treinamento animalesco descrito no livro e encenado no filme, uma fera que a elite treina e envia para as comunidades pobres. Em vez de “tropa de elite”, são, fundamentalmente, a “tropa da elite”. E nem mesmo os que o livro considera a “elite da tropa” parecem entender isso com a devida seriedade.

Pode-se argumentar que os “traficantes” (por que os vendedores de bebida não são também assim chamados?) são também “feras”, cruéis etc. E o são. Não é, como muitos argumentam, adequado dizer que simplesmente são “vítimas da sociedade”. São, isso sim, como já disse em meu trabalho “O charme do crime midiatizado: desconstruindo uma guerra a Beira-Mar”, bons alunos.

O mundo corporativo, o das grandes empresas psicopáticas (o filme Corporation é bem ilustrativo para entender isso), ensina todos a ser comerciantes sem escrúpulos, a não considerar o outro, a fazer tudo o que for possível para obter vantagens, a destruir o que for se isso resultar em lucro. Depois, com uma razão cínica pernóstica, solta as feras fardadas para “conter” as feras faveladas de short e sandálias.

Os policiais do BOPE retratados no filme, com seus ideais de conduta e ferocidade na defesa da legalidade, bem poderiam ser considerados os mais sãos da história, não fosse o delírio presente nesses ideais. Enquanto acreditam piamente na força da lei e que matar é a solução para as feras pobres, agem de forma a preservar e perpetuar não apenas a injustiça, mas de modo a perpetuar a violência e insuflar mais ódio. As elites agradecem à “elite da tropa” e à “tropa de elite”.

Exercício da morte

Os tais “traficantes” são o correlato dos terroristas do Jihad ou da Al Qaeda. São o “eles” do “choque entre civilizações”, a versão tupiniquim do “império do mal”. E, para combatê-los, há essa “tropa da elite” chamada BOPE, uma versão nossa dos “marines”. A tal “classe média”, no meio do fogo, geralmente julga que essa tropa está a seu serviço. Tola ilusão. Ela apenas acirra o problema que, como sabemos, tem estourado nessa camada social e, tudo indica, continuará a estourar com cada vez maior ódio.

Mesmo que se levem em conta as boas intenções dos autores do livro, não nos parece que a verdade esteja sendo olhada nos olhos, sem meias palavras. Também é um tanto duvidosa a intenção do diretor do filme de, segundo palavras dele no canal Brasil (Globosat), de acirrar o debate. Faltou algo, o mais importante.

Parece ter ficado de fora a surpresa quase fatal que Fausto Wolff citou. No fim da história, fica a dúvida se não se decidiu pelo exercício da morte ao invés do aprendizado da vida.


Luiz Geremias

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