14 de março de 2009

Underground: um rito de iniciação ao consumo


O underground parece ser o fruto dileto de uma reforma da organização da cultura ocidental que se articulou nos últimos 50 anos. É comum observar que não apenas o senso comum, mas textos de várias ordens – de matérias jornalísticas a abordagens teóricas – tratam os fenômenos sócio-culturais ligados à eclosão do underground como revolucionários, como responsáveis por transformações profundas na sociedade ocidental.

Há, porém, outras percepções do fenômeno. Uma delas se remete a uma legítima revolta dos jovens contra os valores dos mais velhos, causando rebuliço suficiente para a transformação dos costumes tradicionais, mas que, seqüencialmente, haveria sido capturada pela mesma lógica que combatera. Nesse caso, fala-se de uma iniciativa algo saudável que teve seu percurso desviado para o caminho comercial, quedando refém. Uma noção eminentemente rousseauniana: a sociedade corrompe as boas intenções.

Outra possibilidade de compreensão é capitaneada pelo argentino, radicado no México, Néstor García Canclini. Nesta perspectiva, parece inevitável pensar a contracultura underground como inserida no mundo do consumo, porém o ato de consumir pode ser entendido como um ato político. Para Canclini, correlato ao consumo há uma iniciativa de pensar o social, de reelaborar o seu sentido, logo, trata-se de uma nova forma de cidadania. O underground, nesse caso, poderia se constituir como uma proposta privilegiada de redefinição dos papéis sociais.

A proposta, aqui, é sugerir uma nova interpretação da contracultura nascida pouco antes da metade do século passado, que aqui é chamada de underground.

Ocupando um lugar marcado.
A hipótese central que orienta este texto remete à compreensão do underground como um dispositivo de poder, nos moldes propostos por Michel Foucault. Não se crê, aqui, ser possível compreender ter havido qualquer movimento revolucionário no underground. Há, sim, algo que se pode chamar de “reforma”, uma rearticulação do centro da identidade. Os objetivos dessa reforma e os usos subseqüentes estão por ser melhor examinados.

Estudos como o de Thomas Doherty – que aborda a “juvenilização” dos filmes – e de Maria Rita de Assis César – que aborda os discursos sobre a adolescência – sugerem que pode não ter havido uma revolta espontânea da juventude. O mais plausível, nesse caso, é afirmar que houve uma adequação discursiva entre as demandas dos adolescentes – postos numa zona existencial turbulenta desde a criação do conceito de adolescência – e os interesses de pessoas bem mais velhas, que apostavam na necessidade do retorno ao modelo liberal de gestão política e econômica. Isso significa dizer que não houve um movimento revolucionário de autoria de hippies, punks, mods ou de qualquer outra das pós-modernamente chamadas tribos urbanas.

Tudo indica que lhes foi insuflada uma rebeldia – bem definida por Erich Fromm, ainda nos anos 50, como fruto de um profundo ressentimento contra a autoridade que encontra sua pacificação no estabelecimento de uma nova autoridade, absolutamente semelhante à antiga ou na conquista da aceitação do rebelde pelo autoritário.

Logo, talvez não seja exato falar em um movimento jovem “capturado” pelo “sistema”. Tudo faz crer que o movimento jovem foi fomentado pelo sistema, leia-se o sistema do capital, como uma forma de desterritorialização das identidades. Se, por um lado, é uma afirmação delirante dizer que alguém tramou o surgimento das tribos do underground, ou inventou o próprio termo underground, não é absurdo afirmar que esses fenômenos se deram no espaço discursivo da rebeldia, bastante adequado ao establishment.

A perspectiva do consumo como ato político é bastante interessante e sensata. No entanto, prescinde de uma compreensão macropolítica que pode ser encontrada no conceito de Império, de Antonio Negri e Michael Hardt. Se não se tomar em conta essa noção, é possível entender o mundo do consumo como existente por si só e, daí, entendê-lo como um campo profícuo para reflexões e atitudes políticas. No entanto, se for tomada a lógica de ação imperial, é impossível não dirigir a atenção para o modo como essa ação se desenvolve e, principalmente, como é estruturante do universo social.

Um poder estruturante.
Fala-se, então, de um poder macropolítico que se instala, como nunca antes havia ocorrido com tamanha eficiência, nas articulações micropolíticas. Como bem explicou Félix Guattari, tem determinado não apenas o pensamento, mas o desejo. Tudo indica que se trata de um imperativo, aos moldes do Império de Negri e Hardt, o que nos remete a uma macropolítica que se articula micropoliticamente, no plano da cultura. Nesse caso, é viável afirmar que o underground ocupou, de forma exemplar e bem comportada, um espaço já previamente existente na cultura e na sociabilidade ocidental. Em outros termos, foi implantado para suprir uma necessidade política da estratégia imperial.

No contexto desta hipótese, parece viável pensar que há uma inequívoca identidade entre as propostas dos jovens e “jovens” do underground e a lógica estrutural dos pendores da economia política postos em marcha nesse mesmo período.

Há que se considerar, ao seguir essa linha de interpretação, que a necessidade de inserção de uma considerável parcela da população no processo de produção e consumo se tornava imperativa. E que, mais importante ainda, o aparato produtivo industrial precisava de sérias adequações para melhor seduzir tanto essa faixa populacional – os jovens – bem como às demais, que acabariam, no percurso, vinculadas simbolicamente ao referencial da juventude.

Parece difícil negar que houve uma efetiva modificação na “solda” que perpassa as relações socioculturais nas últimas décadas. É costume do senso comum referir-se a essa modificação como uma “liberação dos costumes”, e não falta quem teça loas a isso. No entanto, parece ter acontecido, mais propriamente, uma “neoliberalização”. Em outras palavras, as relações sociais, em todos os níveis, passam a ser referenciadas num molde de consumo, modelo de organização econômica vigente a partir desse período.

Nesse contexto de tentativa de mercantilização de todas as esferas do convívio social, a contracultura parece ter se espraiado como uma articulação simbólica bem estruturada que funcionou predominantemente para alimentar esse movimento sociopolítico na estruturação das relações sociais. Como já bem disse Pierre Bourdieu, o poder simbólico só é estruturante porque é estruturado. No caso do underground, é possível notar que a aplicação desse dispositivo de poder parece muito bem arquitetada. Faz com que gente dócil se faça de indócil e incensa um tolo ideal de rebeldia.

Sofrendo com alegria.
Uma forma interessante de entender o posicionamento do underground na sociedade ocidental é pensá-lo como um “rito de passagem”, uma espécie de “rito de iniciação” ao fascinante mundo do consumo: consomem-se drogas e consome-se cultura, sonhos, música e corpos. Principalmente, o underground ensina que pessoas são também consumíveis sem culpas. É o que é possível observar ao se estar próximo de uma dessas tribos, ou “galeras”.

O discurso da rebeldia underground se articula exatamente contra a sociedade “normal”, mas parece intrinsecamente envolvido com ela. Não há qualquer tom revolucionário a ser notado. Confirmando a semântica do discurso rebelde referido por Fromm, um articulista da, há muito extinta, revista Fairplay, Eurico Lima Figueiredo, escrevia, em março de 1968, no meio do rebuliço hippie, que o hippie transferiria para o próximo a responsabilidade de sua vida. Isso, tanto no sentido de que alguém teria que zelar pelo seu sustento quanto em relação à postura alienada perante as grandes questões da realidade.

Deixando intocada a realidade macropolítica, na verdade comungando com ela, o underground se posiciona como o ritual de iniciação que a sociedade burguesa jamais teve. Nele, os jovens da classe média urbana aprendem que deverão se converter ao rebanho que é abatido lentamente no cotidiano da contemporaneidade. São instruídos sobre como deverão proceder para se sentir felizes, apesar de toda a desgraça de sua condição, a condição pequeno-burguesa no mundo dito pós-industrial, no qual a carne da pequena-burguesia substitui a do proletariado. Através do álcool, de outras drogas e do consumo cultural fechado em comunidades estanques, aprendem a reagir com alegria às sangrias do sistema. A dor passa a ser até mesmo divertida. A isso, Jean Baudrillard chama de fun system, e não é absurdo classificar esse risonho sistema como o modelo ideal para uma estratégia de consumo.
Luiz Geremias (2007)

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