18 de junho de 2009

Sobre pastores e jardineiros

M. André G. Haudricourt propôs uma noção interessante para entender a subjetividade de certos povos antigos. Ele contrapõe aqueles que têm como atividade principal o pastoreio e aqueles que chama de “jardineiros”, que são os povos que, como os chineses, compreendem que toda e qualquer ação só é adequada e eficaz se diz respeito das forças naturais. As relações sociais destes “jardineiros” seriam marcadas por uma ordenação que considera um equilíbrio pautado na imanência, ou seja, eram tidas como organizadas de acordo com a natureza dos seres e do ambiente que os abriga. Já o espírito societário dos “pastores” se relacionaria pelo modelo direto e constrangedor de um saber que determina o poder de uns sobre os demais. Certamente se deve dizer que, nesse molde, há os que pastoreiam e há, inevitavelmente, as ovelhas pastoreadas, ou, em termos mais claros e diretos, há os que sabem e mandam e há os que ignoram e obedecem.

Toda a história do ocidente parece marcada por esse parâmetro subjetivo de pastoreio. É preciso atividade, acima de tudo. Não é possível imaginar ficar esperando boas condições para realizar algo. O ocidental deve criar as condições, gerar sua própria história, intervir diretamente sobre a realidade. Enquanto o jardineiro precisa saber lidar com as condições ambientais, climáticas, o pastor não quer saber disso: quer apenas que elas se adaptem ao seu interesse. O jardineiro espera a hora certa para plantar e colher, o pastor quer semear e conseguir frutos na hora em que desejar. Por isso, aquele aprende com a natureza, enquanto este tenta ensiná-la como melhor satisfazê-lo.

O pastor é transcendente, isto é, considera-se de inteligência superior, dotado de atributos que ultrapassam a realidade sensível e que o fazem independente da natureza e determinam que ele aja autoritariamente sobre ela. O jardineiro cultua a imanência, ou seja, está voltado para aquilo que é inerente à natureza, por isso precisa respeitar seus ciclos e acatar os ditames naturais que o seu corpo traz. O deus do pastor é, assim, impositivo e autoritário, único e dono de uma verdade única. O jardineiro crê numa deidade que se distribui pela realidade e que representa o conjunto de forças presentes na natureza. O pastor tem um deus que determina a realidade; já o jardineiro entende que a realidade conforma a sua divindade.

Há inúmeras formas de exemplificar a influência da lógica do pastor nas sociedades ocidentais. É possível utilizar a proposta educativa, que parte do pressuposto de que o rebanho de crianças nada sabe e deve ser conduzido pelo professor. Mas também é viável utilizar o formato comunicacional massificado do ocidente como modelar dessa fórmula subjetiva. Um emissor envia mensagens para inúmeros outros, assim como o pastor dá ordens a seu rebanho. Ele assim age por entender que o rebanho depende dele para sobreviver, mas também por se achar superior.

A orientação que conduz essa mentalidade se reporta ao fato de que o pastor é dotado de inteligência, enquanto o rebanho não é. É possível dizer que o guia se caracteriza pela superioridade humana frente aos animais, da mesma forma como o ocidente aprendeu que o homem é o interventor da natureza simplesmente porque a reinventaria e suplantaria com sua cultura própria. E, usando as palavras de Jean-Pierre Vernant, “a produção humana obedece a uma finalidade inteligente, enquanto os processos naturais realizam-se ao acaso e sem previsão”.

O motivo prático que alimenta a produção subjetiva do pastoreio, geralmente não enunciado claramente, é que o rebanho alimenta o pastor com a sua própria carne e não convêm a ovinos, caprinos ou bovinos questionar isso, muito menos a bandos humanos. Devem, certamente, agradecer ao pastor por este devorá-los. Qualquer semelhança com a contemporaneidade urbana e sua dinâmica não é mera coincidência.
Luiz Geremias

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