4 de junho de 2009

Cultura não é entretenimento

Muito tem se associado a cultura ao entretenimento. Aliás, tem sido comum resumir cultura a entretenimento, como se a cultura fosse passível de ser entendida como um boteco com música ao vivo, uma casa de shows ou a ir “atrás do trio elétrico”, isso sem falar, no campo literário, dos famigerados best-sellers e dos doutores em conceituações simplórias e enviesadas, tão comuns no meio jornalístico. Entretenimento é distração, é diversão, é divertimento, é abobrinha. Cultura é outra coisa.

Diversão é, para Antônio Houaiss, “algo que serve para divertir”, mas também, “diversionismo” – aquela manobra de manipulação política que consiste em discutir o que não é importante para ocultar o importante – e, em um uso militar, explica o filólogo, significa uma “ação que tem a finalidade de desviar a atenção do inimigo”. É interessante ligar esses três sentidos e imaginar que o regozijo da diversão pode ser, então, algo extremamente prazeroso, mas não exatamente para mim: se me divirto muito, é possível que alguém esteja se regozijando muito mais com isso.

Gargalhadas deprimentes
É muito boa a explanação de Michel Maffesoli sobre as divertidas e sensuais tribos urbanas e seu grande corpo coletivo, vivenciado nos shows musicais, nos festivais e nas comunidades simuladas dos bares, na potencialidade revolucionária da orgia e outras idéias barrocas. Muito boa mesmo. Divertida, inclusive. Mas, fica um sabor algo amargo quando é possível observar a forma de vida de quem leva a sério essa idéia de se divertir o tempo todo.

Veja-se a cultura underground. Tome-se essa utopia divertida. Eternos jovens protagonistas de frenéticos embalos, animadas e “culturais” discussões entre cervejas, drogas à vontade e sexo fácil, tudo embalado ao som do “velho e bom” rock’n’roll. Jogos de palavras e ornamentos estéticos acabam com a função de ocultar a absoluta impotência política. Isso, sem dúvida, é diversão.

Enquanto se “curte” alucinadamente a cultura do sexo, drogas e rock’n’roll, há quem se divirta muito mais. Há quem empresaria os grandes astros que divulgam os modismos culturais. Há quem movimenta os aproximadamente U$ 500 bilhões que circulam no comércio das drogas (e que ninguém venha me dizer que essa grana está nas favelas cariocas). Há quem produza, distribua e venda a bebida alcoólica, notadamente a cerveja, cuja maciça publicidade consegue surpreendente sucesso, mesmo (ou talvez por isso) interpretando seu target como composto apenas de idiotas pândegos e babões. Há quem lucre ao transformar a vida numa triste gargalhada.

Infelizmente, porém, essa bazófia não é apanágio apenas de roqueiros, head-banglers (os “batedores de cabeça” do chamado heavy metal) ou punkecas: há também os “pagodeiros mauricinhos”, os cultores daquilo que se convencionou chamar de axé music e outros tantos. Como se diz na linguagem coloquial, todos farinha do mesmo saco.

Transformar para cantar
Cultura não é entretenimento. Há uma inevitável angústia na vivência cultural. Mente todo aquele que nega sentir um insuperável incômodo ao contato com qualquer notável produto artístico. Do mesmo modo, não há quem consiga sair ileso de um diálogo no qual uma idéia completamente nova é apresentada. Uma idéia inédita e sagaz é capaz de tornar toda a nossa construção sobre identidade ou “visão de mundo” incomodamente obsoleta e esdrúxula. Até mesmo nossos desejos se tornam empoeiradas peças de museu quando nos defrontamos com o dissenso inteligente.

O contato com a cultura é devastador e, definitivamente, não combina com “ficadas”, cervejadas, cocaína e axé music, muito menos com o surrado, repetitivo e nada criativo rock’n’roll. Cultura não é diversão, não promove a mediocridade. Não quer desviar a atenção, não almeja o diversionismo.

Isso não significa que a alegria e a festividade não possam compor a vivência cultural. A festa é culturalmente orgástica quando oferece efetivamente uma representação da vitória do brilho contra a escuridão, da sabedoria e do vigor contra a estupidez e a impotência. A cultura não é feita para divertir, mesmo quando é divertida. Quer ir além disso: pretende incomodar, transformar, chamar à responsabilidade de um compromisso com a vida. Assim, o divertimento é o tempero da mensagem, não a mensagem.

Talvez o dito que melhor expresse como se dá essa relação nos seja dado pelo poeta russo Maiakovski. Ele escreve, no poema “A Sierguéi Iessiênin”: “Primeiro, é preciso transformar a vida, para cantá-la em seguida”. É por isso que na fábula da formiga e da cigarra, a formiga tem inobscurecível razão. E é por isso, também, que entender cultura como entretenimento é sinal de inescrutável burrice ou de insanável má-fé.


Luiz Geremias, junho de 2008

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