2 de junho de 2009

A vida no liberalismo é uma droga

Nada melhor do que encontrar algum culpado para desventuras. O chamado “bode expiatório” tem o poder milagroso de afastar o cálice da angústia e do desespero, todos sabemos. Não é à toa que existe há secula seculorum. Se não tivesse uma função tão importante e aliviadora, se o tal bode não guardasse, magicamente, o mal que assola aquele que o inventa, para que crer essa tolice? Qualquer um, com um mínimo de inteligência ou sensibilidade, sabe que não adianta culpar ninguém pelo que ocorre consigo. É inútil, a não ser por essa ilusão de que a dor passa se algo ou alguém a segurar para nós. Ilusão que se impõe, em parte pela fraqueza em suportar a responsabilidade pela própria vida, em parte porque essa responsabilidade impõe dores que, via de regra, parecem ser insuportáveis. Apenas parecem, é claro.

Robert Kurz tem um texto fundamental para entender a criação de bodes expiatórios na sociedade ocidental. Um artigo curto, intitulado “Populismo histérico”. Nele, estão contidas frases que bem poderiam constar naqueles almanaques de ditos espirituosos e definitivos. Bem no começo, está posto: “Bem mais fácil é fazer cabeças rolarem do que subverter relações e modificar formas sociais”. Kurz fundamenta o espírito do texto na noção de que para não se tocar no conjunto do sistema liberal, criador de inúmeras mazelas e gerador de perversões notórias, bodes expiatórios são criados às toneladas. Segundo ele, a ideologia do liberalismo “subjetivou de cima a baixo a questão das causas dos problemas sociais”, de modo que os problemas criados estruturalmente por essa mentalidade que mercantiliza cada milímetro da vida são remetidos sempre à incapacidade de alguém, seja um indivíduo ou um grupo.

Ele quer mostrar o quanto não se pensa na anomia que o sistema incentiva. E tem razão. Veja-se, por exemplo, que a violência urbana não é nada mais do que o resultado de uma lógica pernóstica na qual os moradores de centros urbanos estão inseridos, notadamente os mais pobres. O chamado favelado, diga-se de passagem, vive essa violência literalmente na carne há muito, muito tempo. De algumas décadas para cá, passou a compartilhar essa tragédia cotidiana com o pessoal do asfalto, isto é, passou a, didaticamente, mostrar à classe média o que é viver em constante insegurança e medo. Imediatamente, essa classe e seus meios de comunicação encontraram culpados. Em parte, é claro, essa culpa recaiu sobre os próprios pobres, impuros, feios e violentos por natureza, que foram imediatamente classificados como fascínoras. Por outro lado, culpados foram achados do lado oficial: policiais corruptos, delegados mandriões, secretários de segurança ineptos e políticos corruptos. Ninguém, ou quase ninguém, foi ainda capaz de pensar nas causas que levaram à situação. De nada resolve culpar alguém, já foi dito acima, mas culpar alguém parece ter a propriedade mágica de resolver tudo sem nada resolver.

No texto citado anteriormente, Kurz identifica três inimigos criados pela mídia liberal para corporificar o mal que assola as vítimas do liberalismo: o terrorista, o especulador e o pedófilo. Esses três bodes expiatórios são as figuras míticas do mal que servem fundamentalmente para descarregar a energia negativa que a perpétua crise social do liberalismo engendra. Mas, por que motivo essa negatividade é gerada, qual o sentido e a função disso? É possível pensar que trata-se de uma medida subjetivamente ortopédica: tanto o terrorista, como o especulador e o pedófilo têm em comum serem entidades que agem no escuro, trazendo sempre ameaças, devendo ser combatidas perpetuamente, sem tréguas. Ora, qualquer semelhança com aquilo que o bom liberal chama de “concorrência” não é mera coincidência. Muito menos causal é a definição desses personagens terroríficos como essencialmente anônimos e potencialmente ubíquos. Afinal, num mundo assim, todos, em qualquer circunstâncias, são concorrentes e, como tal, representam sempre ameaças. Seu vizinho pode ser um pedófilo, você sabe. Ou um terrorista, quem pode dizer. Como a fantasmagórica concorrência, essas figuras sempre parecem ser o que não são.

A insegurança se generaliza, pois a comercialização plena das relações humanas exige essa manobra subjetiva para se justificar como natural. O populismo histérico nos prepara subjetivamente para a vida “normal” numa sociedade liberal. E essa “vida normal” é plena de angústias e desesperos que, magicamente, deverão ser debelados de forma parcial, jamais resolvidos. São a gasolina do liberalismo, o combustível que põe o carro do consumo em movimento e geram a necessidade de estar sempre em guerra com o concorrente – e sempre há um concorrente a espreita, como podem haver favelados, terroristas ou pedófilos de tocaia nas esquinas ou em qualquer outro canto.

Além disso, o desagradável estado de espírito gerado nessa lida constante e diária, faz com que estejamos incessantemente procurando um alívio mágico. Trata-se do mesmo mecanismo que orienta o adicto clássico. O usuário de álcool ou outras substâncias psicoativas se supõe incapaz de suportar a responsabilidade de viver sem a droga, cuja falta se afigura, para ele, como insuportável. Nesse sentido, todos somos adictos na sociedade liberal. Sem dúvida, a vida no liberalismo é uma droga.

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