4 de junho de 2009

Considerações acerca das considerações de Carlos Lopes sobre a legalização da venda de drogas

Caro Carlos,

Temos coisas em comum. Somos cariocas, em primeiro lugar. Não sei se posso me dizer um carioca convicto. Não sei bem o que isso quer dizer. Se significa alguém que nasceu no Rio de Janeiro e mantém um namoro eterno com a cidade, então sou convicto de minha carioquice. Em segundo lugar, tudo indica que temos uma ligação afetuosa com o governador Sérgio Cabral. De sua parte, há declarada admiração. Da minha, há, acima de tudo, um sentimento de fraternidade com o “Serginho”, como o chamávamos há uns 30 anos atrás, nós, os que crescemos nos arredores da praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana, recanto de tantas brincadeiras e saudoso estádio de muitas peladas antes, bem antes, do metrô. Naquele lugar, que amo, no qual ainda espero voltar a viver, crescemos, eu e o Serginho Cabral, filho do nobre jornalista, além de tantos outros.

Tudo indica que, também em comum, temos o interesse em refletir sobre as drogas e uma preocupação constante com seus usuários e o destino que acabam tendo no mundo que cerca drogas e consumidores dessas substâncias. Nisso, o Sergio está também conosco. Afinal, tem se pronunciado com coragem e apontado contradições importantes na forma com a qual a sociedade ocidental lida com drogas e drogados.

Li o teu texto “Considerações sobre a legalização das drogas”, que me foi enviado por um companheiro de trabalho e, ao que tudo indica, também um parceiro de sonhos e projetos políticos. É sobre esse tema que venho falar, ou escrever, tecendo algumas considerações às tuas “Considerações”. O assunto é complexo e exigiria muitas e muitas linhas para ser tratado com abrangência e tenacidade. Não as vou escrever, pois teu texto foi bem objetivo e, para levá-lo na devida consideração e respeitar o leitor sem tempo para delongas teóricas, vou também ser curto e, o máximo possível, objetivo.

A referência de tuas considerações é uma entrevista de Sergio Cabral a uma revista. O tema é a legalização da venda de drogas. Ele disse que há um aumento da demanda por drogas. Você argumenta que é uma demanda involuntária, isto é, independente da vontade do sujeito. Creio que é preciso pensar isso com mais vagar.

Sem dúvida, você tem razão. Porém, se pensarmos a contemporaneidade, vamos perceber que não é apenas o drogado que tem demandas involuntárias. Aparentemente, te escapou à atenção que o sujeito de nossos tempos se caracteriza pela demanda involuntária. E por que você não viu isso? Aparentemente pelo motivo de que você se utiliza de um conceito subjetivo iluminista, ou com fortes identidades iluministas. Nele, o sujeito decide – racionalmente – o que quer, o que é melhor para si e para as pessoas que preza. Se tiver informações adequadas, se adquirir conhecimento sobre um determinado tema, pode evitar o que é ruim e escolher o que é bom. Pode negar-se a fazer algo que não queira e decidir – voluntariamente – o que quer, discernindo o que lhe faz bem do que lhe faz mal. Em outras palavras, podemos dizer que assim se torna um cidadão.

Ora, o sujeito que temos conhecido em nossos dias se caracteriza mais pela lógica do consumo do que pela diretriz da cidadania. E a lógica do consumo necessita, para ter sucesso e continuidade, de uma considerável inconsciência, ou seja, precisa fazer com que haja sempre, predominantemente, atos involuntários por parte do consumidor. Os estudos publicitários podem ajudar a entender bem isso. Ao comprar um maço de cigarros, uma droga lícita, o sujeito contemporâneo está fazendo uma escolha que vai muito além da busca voluntária por inspirar fumaça e expeli-la posteriormente.

Saindo do campo específico das drogas, o comprador de um carro está, da mesma forma, uma escolha que escapa ao campo da utilidade do veículo. Voltando às drogas, o consumidor de cerveja incorpora ao ato de consumir vetores que vão além da busca do prazer experimentado pelo sabor do líquido ou do efeito que proporciona, ou, mais ainda, da busca de companhias amistosas. Nos tempos idos da lógica iluminista, isso talvez fosse assim, mas agora, infelizmente, é.

Cada compra ou ato de consumo tem determinantes que não estão claros para o comprador. No jogo do consumo, absolutamente hegemônico em nossos tempos, o ato voluntário ou o ato utilitário não têm tanto valor. O que o consumidor busca é algo mais que o uso ou a utilidade que o produto tem em si, do prazer objetivo que lhe proporciona. Vale mais a marca, a imagem que está agregada a ela, do que propriamente a coisa-em-si. O objeto é utilizado para se chegar a algum outro lugar no qual o objeto não está. Isso nos leva a dizer que, na maior parte das vezes, o consumidor não identifica claramente as implicações que acompanham a adesão a uma marca, a uma imagem pessoal ou a um padrão de consumo. Não identifica conscientemente, mas o faz num outro plano – inconsciente, podemos dizer. Essa “mecânica” faz com que a maioria de nós seja constituída por consumidores contumazes, cada vez mais ignorantes de sua posição no mundo. Consumidores contumazes de coisas, drogas, pessoas, sonhos etc. Assim, a demanda pela droga é involuntária como a esmagadora maioria das demandas no mundo dos consumidores.

A questão também não envolve, matematicamente, o simples aumento de oferta determinante do aumento de demanda. Há, aí, uma interação qualitativa. A demanda tem um fator qualitativo agregado, que a oferta precisa captar. Por isso, há pessoas que usam determinados produtos e não outros. Mais que um ato racional, isso significa um ato simbólico, uma adesão imaginária a uma imagem. Por isso, há os que usam drogas ilícitas e os que não as usam, ou que usam drogas lícitas, ou, ainda, que fazem funcionar como drogas a religiosidade extrema, o trabalho obsessivo, a compra desenfreada.

Como todo consumidor, o usuário de drogas ilícitas é um consumidor de algo mais do que as drogas. Não é tanto a droga em si que tem valor, mas o contexto que a acompanha. Isso pode ser atestado por qualquer consumidor dessas substâncias, inclusive do álcool, tão tolerado por você e pelas autoridades. O consumidor contumaz de drogas, assim, é um consumidor como qualquer outro. Tem, o que não é uma diferença, uma especificidade de nicho de consumo: idolatra o negativo, venera as sombras, o dark side, busca o ambiente da contravenção, da representação de contrariedade com certas estruturas sociais, muito embora não tenha muito interesse em alterá-las. Esse é um vetor simbólico extremamente importante para entender o consumo da classe média, principalmente dos jovens dessa faixa de população.

O consumidor de drogas é, como todo consumidor contumaz, um impotente, algo como uma triste figura, um quixotesco viajante no mundo dos sonhos pré-projetados da sociedade de consumo - que, além de todos esses defeitos, ainda ingere substâncias deletérias para sua saúde física e mental. É adepto do que Jean Baudrillard chamou de fun system, um interessante jogo no qual todos estão na pior e tristes, mas brincam de estar se divertindo muito e felizes. Esse sistema de diversão é o mesmo que os une aos freqüentadores assíduos de shopping centers, aos “amigos do copo”, aos consumidores em geral. Logo, cá pra nós, o problema não é exatamente o de que os consumidores de drogas fazem escolhas involuntárias. Eles estão adaptados ao molde, apenas isso.

Que tal pensarmos que na cultura, nesses termos, está o problema? Em termos objetivos, seria melhor propor uma reformulação da proposta subjetiva de nossa sociedade. Se isso está incluído em sua proposta de transformar a realidade, estamos juntos.

Aí, a questão do vendedor se torna crucial. Como vamos mudar algo se temos inimigos tão fortes politicamente, poderosos economicamente e tão influentes na formação dessa cultura? Sabemos, exatamente, quem são? Podemos identificá-los? Falar dos vendedores sem lhes dar os nomes não adianta muito, não é? O comércio de drogas movimenta, aproximadamente, meio bilhão de dólares/ano, é muito dinheiro e dinheiro sem imposto. Dinheiro “lavado” diariamente no mercado financeiro, que paga muito mais do que cobra. Enquanto você, eu e boa parte da população paga impostos, esses vendedores não o fazem. Seus produtos são extremamente caros, pelo fator risco, e livres do fisco. Lucram muito, muito mesmo.

Eles têm a oferta, há a demanda. E o conteúdo simbólico do produto garante consumidores certos. Um dos conteúdos mais culturalmente arraigados é a da simulação da revolta, da rebeldia, do fascínio pelo ilegal, pelo desordenado, pelo sujo, pelo errado, pelo mal. Veja a geração “sexo, drogas e rock’n’roll”. Deterioram-se pessoal, cultural e politicamente, além de gastarem demais com suas “escolhas involuntárias”. No entanto, estão comprando uma idéia, um conceito, mais do que comprando drogas. Estão aderindo a um movimento de massa, um movimento de rebeldia. Rebeldia, já definiu bem Erich Fromm, é a postura do conformista. Logo, essa geração é caracterizada pela adesão a uma rebeldia fictícia, enquanto, na prática, são bem comportados ao extremo. Ou seja, não se rebelam contra nada a não ser contra sua capacidade de transformar a realidade. A cultura contemporânea, profundamente marcada pelo “sexo, drogas e rock’n’roll”, é uma cultura de simulacro de revolta, mas, na verdade, absolutamente conformista. Sua oferta subjetiva para a demanda juvenil de transformação da realidade é, em suma, ouro de tolo.

Há, então, os vendedores, os que estão no topo, lucrando muito com essa cultura. Mas, há, também, inúmeros agentes dessa cultura agindo com a melhor das fés, querendo apenas tirar proveito da situação, se dar bem, ser amados e desejados etc. A estrutura é, desse modo, bastante firme. É muito difícil mexer nela.

Nesse sentido, a discussão sobre a legalização da venda e do uso de drogas, proposta valentemente pelo governador Sérgio Cabral, é não apenas pertinente, mas oportuna e indispensável. E por quê? Enquanto transformamos a realidade, há que se pensar que essa empreitada é difícil, trabalhosa e, principalmente, demorada. Há que entender que muitas coisas estão acontecendo. Que jovens pobres e nem tão pobres estão rodando a cidade, transportando e vendendo produtos ilícitos. Expõem-se a problemas físicos graves, a situações de risco letal e, talvez mais que tudo, a uma idiotia, um conformismo sócio-político revoltante.

Uma proposta de legalização traria, pelo menos, uma quebra na marca subjetiva ligada ao consumo de drogas. O fascínio pelo proibido, pelo ilegal, pelo marginal, perderia força, ou teria que reconfigurar drasticamente sua proposta. Pode, assim, ser uma boa idéia.

Tenho algumas objeções críticas em relação a outras considerações feitas por você.

Em primeiro lugar, a proibição do álcool nos Estados Unidos dos anos 20 não é uma referência tão estúpida quanto você quis sugerir. A articulação política, citada por você, para a aprovação da Lei Seca, ou Lei Volstead, não estava suspensa no ar, fazia parte de uma sociedade com uma lógica cultural que, naquele contexto, facilitava medidas como essa. Para aprofundar esta questão eu teria que gastar muitas linhas, e não creio isso adequado nem necessário no momento. O fato é que a proibição facilitou a lucratividade de criminosos e sugeriu o caminho do crime para inúmeras pessoas. Tudo pela estupidez da Lei, concordo com você. Não gosto de álcool, preferencialmente não freqüento lugares nos quais se bebe álcool nem gosto de lidar com pessoas que consomem essa substância, ao menos quando a estão consumindo. No entanto, creio que a proibição somente faria o que fez: elevar os ganhos de criminosos – de grandes criminosos – e excitar as pessoas – notadamente as mais novas – a provar isso que, por ser proibido, se torna atraente.

Não tenho expectativas, porém, de que grandes criminosos apenas o deixem de ser por conta de problemas nos negócios, assim como sei que os vendedores de álcool não se tornaram anjos com a queda da Lei Seca. Não acho Roosevelt um grande exemplo a ser seguido, também. Não morro de amores pelo New Deal e compreendo essa iniciativa como uma estratégia estadunidense de rearticulação interna para sua ofensiva externa. E a sociedade do consumo na qual vivemos hoje, esse Império descrito por Negri e Hardt, teve uma boa arrancada com Roosevelt e seu New Deal. Se compreendo algo como “mudar a realidade”, compreendo que essa sociedade com seus valores aéticos e amorais precisa ser repensada e, sem dúvida, mudada.

Discordo de você também do seu argumento de que a proposta de legalização seja, para muitas famílias de favelas e periferias, “sinal de que não podem contar com a ajuda do Estado – ou, pior, o sinal de que o Estado é seu inimigo na luta para salvar um ente querido”. Com a proibição, essa gente não apenas não pode contar com a ajuda do Estado, como principalmente o tem contra e, conhecendo as práticas policiais, o tem como um assassino em potencial de seu ente querido envolvido com o consumo de drogas. Hoje, sem dúvida, o Estado e a coletividade não somente estão se lixando para essas vidas, como as perseguem raivosamente, com sangue nos olhos. Isso mudará com a descriminação? Não é possível afirmar com certeza, mas que com a situação atual isso não mudará, disso podemos estar certos.

Em terceiro lugar, a mera crença de que a dependência de drogas é um atentado à liberdade individual não está bem posta no seu texto na medida em que você não apenas tolera como crê que ser um “amigo do copo” é algo simpático. Nem todo usuário de drogas é dependente delas – o é mais do significado de usá-las do que delas, reitero – do mesmo modo como nem todo consumidor de álcool vive alcoolizado. As duas situações se equivalem e se um consumidor é tomado por você como necessariamente dependente e o outro não, há algo errado aí.

Fico um tanto indignado ao perceber que o álcool é vendido livremente, mesmo sendo pernóstico para a maioria de seus usuários, que leva à dependência de forma mais ativa e cruel, enquanto as demais drogas são todas de uso proibido. A sua experiência com usuários de álcool é bastante otimista, pelo que pude perceber. A minha, porém, é bastante pessimista. Vi muita coisa ruim estimulada pelo álcool, vi e vejo ainda. Vejo muito bebedor que se define como “social”, e que enleva o valor afetivo de beber entre amigos, imbecilizado, moral e eticamente bestializado pelo uso supostamente civilizado dessa droga. Se falarmos de adolescentes, isso se torna bastante drástico. O Sérgio Cabral, quando ainda era o Serginho e morava “no Morrinho” – como era conhecida a rua Azevedo Pimentel, em Copacabana, certamente viu também muitos amigos e amigas, pais e mães de amigos e amigas, parcial ou totalmente destruídos pelo consumo de álcool.

Você usa a heroína e o crack por todo o texto como exemplos extremos do malefício das drogas. São exemplos extremos que têm nitidamente a intenção de não admitir contestação. Essa prática é comum aos médicos, todos sabemos. O alarmismo se justifica como um alerta em benefício da saúde, diziam alguns que conheci. No entanto, os malefícios do álcool também são extremos e, não tenho qualquer dúvida, pelo que pude entender em minhas quase cinco décadas de vida, mais sérios do que os causados pelo uso de drogas como a maconha. Porém, você diz que a maconha é incensada e apresenta um testemunho pessoal de danos causados a uma certa pessoa ou pessoas. Também conheço gente que se deu muito mal por iniciar muito cedo o uso dessa droga e por usá-la em demasia. Conheço muito mais gente que padece pelo uso de álcool. Trabalhei no Instituto Philippe Pinel, aí no Rio, e fiquei alarmado com a freqüência das internações por dependência de álcool e, mais, com o estado lastimável dos pacientes alcoólicos. Se me permite, entendo a maconha como uma substância bem menos perniciosa que o álcool e de efeito bem mais agradável para um consumidor não contumaz. Entendo também que esse aspecto tem sido levantado por algumas pessoas, o que não significa incensar nem glamourizar o seu uso.

Em tempo: o álcool não é admitido, tolerado e incentivado por ser uma droga branda. Isso não é. Mas, por motivos culturais bem delineados. Se tivéssemos sido colonizados pelos índios mexicanos, por exemplo, quem sabe o chá de peiote fosse tolerado e incentivado. O álcool nasceu no alvorecer da civilização ocidental – a cerveja era consumida antes de que se soubesse o valor da escrita, o vinho era cultuado entre os gregos e os romanos – e é um integrante importante dessa cultura ocidental, por motivos que posso explanar em outra oportunidade.

Isso não o faz melhor do que a maconha ou outra droga, com a exceção da heroína, que causa uma dependência mais trágica que a do bebedor contumaz, ou do crack, cujos efeitos deletérios são rápidos e fulminantes. E mais: essa droga, como todas as outras, leva a ambientes propícios para o alto consumo e, como as demais, necessita sempre de doses maiores para fazer efeito. Como se costuma dizer da maconha, leva também às tais “más companhias” de outros drogados ou de quem venda essa e outras drogas. Se formos levar a sério o conceito de droga, dono de botequim deveria ser considerado traficante. E – me permita uma revolta extrema, mas justificável –, quem as vende para crianças e adolescentes deveria ser executado em praça pública.

Parabéns a você pelo texto instigante, que dá oportunidade de pensar esse tema tão delicado e polêmico. Parabéns ao Serginho, hoje governador do estado, que tem como capital e sede do governo, a cidade na qual nasci, e que amo muito, e na qual meus pais, irmã e meu filho vivem, pela iniciativa de propor essa discussão. Um abraço fraterno aos dois.


O texto de Carlos Lopes foi publicado em http://www.umes.org.br/umes/noticias.php?ID=250 e no jornal Hora do Povo, edição 2557.


Luiz Geremias, abril de 2007

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